sábado, 25 de junho de 2022

O REGRESSO DAS TREVAS

 

                                                (Chloe Cushman para a New Yorker)

(Uma sensação declarada de náusea percorreu-me quando comecei a ler as notícias no Twitter sobre a decisão do Supremo Tribunal de Justiça americano de remover o direito constitucional ao aborto, abrindo o caminho a que o aborto seja ilegalizado ou substancialmente restringido em cerca de 20 Estados americanos. Tudo isto num período em que o apoio à liberalização do aborto nunca foi tão elevado como hoje, sendo o último número de 2/3 de americanos que defende a manutenção da decisão ROE agora suprimida pelo STJ e de 57% a favor do direito da mulher ao aborto sem qualquer restrição. Depois da náusea, vem a perceção de que esta decisão do STJ vinha sendo preparada já há muito tempo e que se insere numa trajetória de afirmação não democrática do conservadorismo religioso mais intransigente, da qual estou agora seguro Trump é apenas um epifenómeno, um títere nas mãos de gente bem mais poderosa e longe do escrutínio político Ou seja, o regresso às trevas não ficará por aqui.)

Em muita coisa que li sobre o assunto este fim de semana, há um texto que me encheu as medidas, escrito por Jia Tolentino, uma jornalista da New Yorker.

Um simples excerto explica o impacto desse artigo:

O futuro em que agora estamos mergulhados não se assemelha ao passado anterior ao ROE, quando as mulheres procuravam abortos ilegais e frequentemente encontravam aí a morte. O principal perigo está agora noutra coisa e provavelmente irá bastante longe. Entrámos numa era não de aborto inseguro mas antes de generalizada vigilância e criminalização – de mulheres grávidas, seguramente, mas também de médicos e farmacêuticos e de pessoal de clínicas e de voluntários e de amigos e membros das famílias, de toda a gente que mantiver um contacto relevante com uma gravidez que não termine num nascimento saudável. Aqueles que argumentam que esta decisão não mudará substancialmente as coisas – um instinto que podemos encontrar em ambos os lados da divisão política – estão cegos quanto às vias através das quais as cruzadas a nível estatal antiaborto já transformaram a gravidez numa punição e também quanto às vias pelas quais esta situação tudo indica que se transformará em algo ainda pior.”

O artigo de Tolentino documenta até à exaustão uma multiplicidade de casos e peripécias em que, para além do recuo civilizacional que a limitação do aborto representa, os atropelos à liberdade individual se sucederam em vários Estados americanos, numa antecipação tenebrosa do que esta decisão do STJ irá possibilitar.

Mas o mais assustador é que estamos perante uma operação calculada e programada há muito tempo pelo conservadorismo religioso americano mais agressivo. Trump foi o títere ideal para perpetrar a mudança na composição do Supremo Tribunal. Neste momento, já abandonei a ideia de que Trump seja o elemento motor dessa insidiosa transformação. Isto não significa que o ex-Presidente não consiga ser reeleito. Sê-lo-á se as forças ocultas que lideram esse conservadorismo religioso, que converge com muitas outras causas como a não limitação do uso de armas, a isenção fiscal dos mais ricos, a institucionalização do racismo e do não respeito pelas minorias, acharem que ele continua a ser o títere adequado para prosseguir na imposição à sociedade americana de um conjunto de valores que estão muito longe de ser dominantes. A Ucrânia que se cuide pois pode tocar-lhe a fava em todo este processo de usurpação democrática em curso na sociedade americana.

Mas há lutas para travar.

A minha candidata Democrata favorita Elizabeth Warren, Senadora pelo Massachussets e Tina Smith, Senadora pelo Minnesota, com experiência de trabalho no Planned Parenthood, dão o mote no New York Times:

Em simples palavras: Temos de restaurar a nossa democracia de maneira a que uma minoria radical não possa mais abafar a vontade do povo. Será um combate longo e duro e a via para a vitória não é certa. Mas é um combate justo que temos de ganhar – não importa o tempo que demorar. Nós as duas vivemos numa América sem Roe e não queremos regressar ao passado. Nem agora e nem nunca”.

 

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