quarta-feira, 22 de junho de 2022

MOVIDAS E OUTRAS CONTRADIÇÕES URBANAS

 



(Depois de uma ida em trabalho ao Alentejo, Évora, com direito a uma revisita do sempre aprazível Dom Joaquim e um dia ameno de 20 graus de que já não tinha memória, regresso às lides, pegando numa notícia do Público de hoje, afinal uma questão recorrente e à qual as nossas visões mais ou menos internacionalistas da Cidade têm dedicado atenção residual. A notícia, assinada pela jornalista Mariana Correia Pinto, diz simplesmente isto: “Cidadãos descontentes com novo regulamento da movida: “Isto vai de mal a pior”. O tema é relevante, tem-me atraído essencialmente pela sua relação com o meu tema urbano de eleição, as atmosferas, mas em meu entender tenderá a assumir proporções que irão colocar-se no centro de qualquer projeto urbano para cidade que se preze. Daí o ter recuperado para tema deste post, prometendo que não o irei abandonar e que não se trata de um mero interesse circunstancial.)

Comecemos pela indevida apropriação do termo movida. O termo (e também a prática urbana) popularizado nos tempos da célebre liderança de Tierno Galván na cidade de Madrid foi um fenómeno fortemente contextualizado no tempo. Não só pela relevância que essas atmosferas assumiram no projeto de Cidade de Galván, mas sobretudo pela massa demográfica dos “baby boomers” que a protagonizaram. Há tempos, em conversa com amigos espanhóis e falando do assunto, diziam-me que os protagonistas desse fabuloso movimento estão hoje reformados ou mortos, logo sem grande vontade de protagonizar e animar tais atmosferas. Não por acaso, Isabel Diáz Ayuso, a impetuosa líder da Comunidad de Madrid (não do Ayuntamiento), sempre pronta para afrontar o governo central de Sánchez, apoiou-se sim no chamado movimento das tabernas madrilenas e não em qualquer arremedo de movida. Hoje, a geração mais nova do botellón, fez da rua uma espécie de direito ao álcool e aos shots, pelo que falar de movida a esse respeito é um completo insulto aos tempos de Tierno Galván.

Mas o termo acabou por ficar, reconheço que tem mais sortilégio do que as minhas atmosferas, e o Porto não fugiu à regra. Cidade pequena, com as infraestruturas de lazer muito concentradas do ponto de vista espacial, a animação portuense emergiu fortemente ligada a dois aspetos, a do estatuto de Cidade de estudantes com o fenómeno Erasmus a comandar essa atratividade e obviamente o surto turístico, sobretudo do alojamento local, com um perfil de turista, em termos etários e de padrão socioeconómico, que se ajustou como uma luva a essa forma de animação. Simultaneamente, a antiga concentração dessas dinâmicas na zona da Ribeira foi dando lugar a outras atrações, com destaque para todo o território em torno do edifício da Reitoria da Universidade, cobrindo uma vasta zona, que vai das ruas de Ceuta, José Falcão e Mártires da Liberdade ao Carmo e centralidade histórica do Piolho incluindo a praça Guilherme Gomes Fernandes, a rua da Fábrica, os Clérigos e obviamente as tão populares Galerias. Por duas ou três vezes, em que viajei em trabalho de Faro para o Porto, à sexta-feira à noite na Ryanair, fiquei espantado com o número de grupos de jovens, sobretudo raparigas, que viajava para o Porto à procura da sua animação noturna. Espantados? Sim também fiquei e isso era para mim um indicador do que estava a acontecer.

A animação económica sobretudo noturna que este movimento tendeu a gerar acabou obviamente por transformar-se num conjunto de interesses poderoso, chamando muitos investidores, criando emprego, precário claro está, deixando a sua marca de transformação de usos na Cidade, em claríssima cumplicidade com a expressão crescente, só amortecida pela pandemia, do alojamento local.

Como sempre acontece nestas dinâmicas expressivas e que se impõem pela força das circunstâncias, os números da ocupação urbana e hoteleira fizeram implicitamente esquecer outros grandes objetivos a que a Cidade se propunha. Entre eles, o combate ao declínio demográfico pela atração de novos residentes, principalmente de gente qualificada, e também do combate ao esvaziamento do centro da Cidade, que pontificou sobretudo os consulados de Fernando Gomes e agora de Rui Moreira, podendo dizer-se que como é costume nunca foi possível compreender o projeto de Rui Rio nessa matéria.

O grande erro das políticas urbanas em Cidades com ambição a notoriedade internacional, como o Porto, é pensar que tudo é adicionável e convergente com objetivos estratégicos. Ou seja, imaginar que não há escolhas a fazer e que não há conflitos a gerir com o equilíbrio possível. A notícia do Público mostra essa irredutibilidade. A gestão da chamada movida entra em choque com a ideia da atração/fixação de residentes no centro da Cidade, não propriamente apenas o centro histórico tradicional, mas aquilo que eu gosto de denominar de território da planta redonda.

A notícia da jornalista Mariana Correia Pinto é particularmente relevante pela qualidade dos testemunhos vivenciais que conseguiu reunir. Gostei especialmente de alguém que dizia que imaginar que é um regulamento que vai resolver este tipo de conflitos não é mais do que uma ideia peregrina. Testemunho sábio e lúcido. A dinâmica de convivência entre a função residencial e a força de atmosferas essencialmente comandadas pelo baixo preço do consumo de álcool, logo particularmente ruidosas e sujeitas a todos os descontrolos e desmandos, é praticamente impossível. Uma outra forma de conciliação de interesses seria necessária, essencialmente de natureza ascendente e liderada por gente com forte experiência de gestão da participação urbana. Sem essa dinâmica institucional de base, a evolução mais provável é a animação matar de vez o ressurgimento da função residencial no centro da Cidade, reconduzindo-a a zonas de mais baixa concentração dessas movidas a mais ou menos espontâneas. Algumas zonas poderão escapar, como acredito que seja o caso do distrito das Belas Artes, com uma ocupação mais equilibrada ao longo do dia, mas nas zonas de mais acentuada concentração o mais provável é o esmagamento da função residencial.

Pois é assim, há escolhas para fazer e nem tudo soma, muita coisa subtrai e pode gerar dinâmicas cumulativas não virtuosas.

 

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