Ontem acabei a leitura do novo romance de Michel Houellebecq, o mais controverso e estranho, mas também genial, escritor francês contemporâneo. E o facto é que gostei bastante de “Anéantir” (“Aniquilação” por cá), talvez a obra de ficção mais “normal” do referido autor e passando a disputar com “O Mapa e o Território” a minha preferência de entre os seus escritos. Sem fugir aos sombrios temas de eleição que o caraterizam, alguns tratados em livros anteriores com exageros nem sempre aceitáveis à estrita luz da nossa lógica civilizacional, Houellebecq “distancia-se aqui do niilismo de que tantas vezes o acusam” e “entretece dois fios distintos, o público e o privado, mostrando-se simultaneamente como thriller político e reflexão metafísica”.
Pelo meio do enredo, são deliciosas as inúmeras e aparentemente prosaicas passagens que nos convocam para reflexões sérias, como as três que seguidamente transcrevo avulsamente a título de mera e circunstancial ilustração: (i) “Nas últimas décadas, a França transformara-se numa justaposição aleatória de áreas metropolitanas e de desertos rurais, era a mesma coisa um pouco por todo o mundo, com a diferença de que, nos países pobres, as áreas metropolitanas eram megalópoles, e os subúrbios, bairros de lata”; (ii) “Na disparidade cada vez mais evidente entre as intenções dos homens políticos e as consequências reais dos seus atos havia qualquer coisa que era malsã e até maléfica”; (iii) “Família e conjugalidade, eis os dois polos minguantes em torno dos quais se organizava a vida dos últimos ocidentais, nesta primeira metade do século XXI. (...); A doxa liberal persistia em ignorar o problema, toda cheia da sua crença ingénua de que o incentivo do lucro poderia substituir-se a qualquer outra motivação humana, e poderia por si só fornecer a energia mental necessária à manutenção de uma organização social complexa.”
Após mais de seiscentas páginas de narrativa entrecortada por relatos de sonhos e reflexões adjacentes, Houellebecq proporciona-nos descrições tão lúcidas quanto cruéis (“A vida humana é constituída por uma sucessão de dificuldades administrativas e técnicas, entrecortadas por problemas médicos; com o avançar da idade, os aspetos médicos assumem maior importância. A vida muda então de natureza, e torna-se mais parecida com uma corrida de obstáculos: exames clínicos mais frequentes e variados escrutinam o estado dos órgãos vitais. Concluem que a situação é normal, ou pelo menos aceitável, até que um deles ofereça um veredito diferente. A vida muda então de natureza uma segunda vez, para se tornar um percurso mais ou menos longo, e doloroso, em direção à morte.”) até terminar com um incontornável apontamento de “submissão” perante a miséria da condição humana e um melancólico sentido da vida (“ele sempre vira o mundo como um lugar ao qual não deveria ter sido lançado, mas que não tinha pressa de abandonar, simplesmente porque não conhecia mais nenhum” ou “se calhar, até é muito simples, a vida, talvez não haja grande coisa para saber, basta uma pessoa deixar-se levar” ou “de qualquer maneira, Deus permaneceria calado, é o seu modo de comunicação habitual, mas já era qualquer coisa, já era muito, contemplar esta paisagem deserta e esplêndida, banhada no silêncio total”), pondo na boca do protagonista Paul um necessário conformismo (“não acho que estivesse nas nossas mãos mudar as coisas”) e na boca da sua mulher (Prudence) uma inequívoca confirmação disso mesmo: “teríamos precisado de maravilhosas mentiras”.
Estou largamente consciente de que Michel Houellebecq poderá ter os maiores defeitos de caráter, ser merecedor das maiores dúvidas em termos de posicionamento cidadão ou aparecer portador de uma leitura geral do mundo eivada de elementos perigosos (e reacionários?), mas tais considerações não me inibem de considerar que escreve maravilhosamente e, sobretudo, que a sua escrita nos força a introspeções que estão verdadeiramente na base da existência. A não perder, pois.
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