sábado, 4 de junho de 2022

A DUALIDADE DE SEMPRE

 

                                                (Melides)

(Com os sinais de presença do vírus a dissiparem-se lenta mas creio que sustentadamente por tudo quanto é corpo, procuro recuperar a rotina da escrita, utilizando hoje como mote e inspiração a crónica semanal na revista do Expresso de Clara Ferreira Alves, numa visão que lhe é muito própria de descrição da profunda dualidade existente entre o Portugal dos estrangeiros milionários que investem e se instalam e a larga massa de remediados de que o País continua a alimentar-se. A dualidade que CFA analisa com mestria e ironia que baste existe e não pode ser ignorada. O meu ponto não é esse. É antes o de tentar mostrar que o investimento estrangeiro em Portugal não está irremediavelmente condenado a seguir os padrões dos que se instalam por Cascais ou Sintra, Comporta e Melides ou Quinta do Lago ou então em edifícios de luxo no centro de Lisboa.)

A cronista tem carradas de razão quando ridiculariza a estranha propensão que os Portugueses e as autoridades políticas alimentam relativamente a personalidades do “socialite” mais elevado que nos visitam e se instalam, não importa se furtivamente, temporariamente ou apenas para se distraírem das suas vidas cansadas do jogo do Instagram e de outras redes. Não é coisa de agora apenas. Recordo-me que nas minhas primeiras idas ao Algarve, se respirava por lá um mistério estranho e inconfessável quanto à presença de personalidades como a princesa Soraya (creio que nas imediações da praia de Santa Eulália) e o “pop singer” Cliff Richards (esse mais para as bandas de Lagoa). Esta nossa propensão para abrir os nossos sorrisos até nos doer a boca e consolidar a nossa condescendência para com este tipo de personalidades revela psicanaliticamente alguma má consciência quanto à nossa situação real e quanto à nossa capacidade de valorar e apreciar as nossas coisas. Precisamos que alguém com notoriedade internacional inequívoca, não importa se mais ou menos construída e paga a peso de ouro, que reconheça as nossas belezas e modelo de convivência. Quando chegam e vomitam juízos positivos na primeira entrevista que concedam, passamos a estar felizes. A história de CFA passa por princesas em Melides, possíveis ligações e interesses de George Clooney, entroncando na efemeridade de Madonna, que chegou, viu, gozou e zarpou para outra e no ridículo a que Fernando Medina, então presidente da Câmara Municipal de Lisboa, se submeteu para encantar a americana e convencê-la a ficar.

E não me venham dizer que é o mercado das revistas cor de rosa a alimentar toda esta doideira. A sua expressão é insuficiente para explicar alguma coisa. Existe mesmo uma má consciência nacional e em vez de nos encharcarmos em antidepressivos e ansiolíticos uma presença ou alguém importante do jet set internacional dá no mesmo.

Este esforço condescendente para os importantes e milionários que nos visitam teve nos vistos Gold e nas regalias fiscais para estrangeiros que aqui se instalam duas setas avançadas, aliás incompreensíveis macroeconomicamente, dado o modelo de afetação de recursos de que nos queríamos livrar. Depois da óbvia exaustão do modelo dos não transacionáveis que conduziu ao pedido de resgate financeiro não tem desculpa possível enveredar por incentivos fiscais que apontam na mesma direção.

Depois, regra geral não existem recursos para sustentar em campanhas de promoção internacional do país as vantagens de termos por cá tão ilustres visitantes. O exemplo Madonna é uma excelente evidência da efemeridade que estes fenómenos de atração sempre representam.

Mas o pior de tudo é a perceção que fica que a economia portuguesa não é capaz de atrair outro tipo de investimento direto estrangeiro. Ora isso não é verdade. Uma grande parte do tecido de PME inovadoras, sobretudo nas regiões Norte e Centro, não tem arcaboiço suficiente para gerar um impulso generalizado de crescimento e induzir a complexidade e diversidade de especialização que o desenvolvimento do País exigiria. Necessita de investimento direto estruturante do tipo que o modelo Bosch representa para a indústria exportadora do Norte. A dualidade “milionários do jet set versus população pobre e remediada” é uma falsa dualidade. Existe uma ampla margem de possibilidades de atração de IDE estruturante, tanto mais evidente e credíveis quanto mais se reforçarem em Portugal a melhoria das qualificações e o dinamismo de PME inovadoras. Deveria ser para este objetivo que a política de atração de investimento deveria estar focada e não para o deslumbramento de descobrir incentivos fiscais de última hora para acolher uma personalidade qualquer que dê notoriedade ao país.

As princesas de Melides e da Comporta podem continuar para entreter a má consciência do pessoal. Mas esse não é o foco. As entidades que trabalham a atração de investimento parecem ter dificuldades em compreender esta evidência e sobretudo estendê-la a todo o território.

 

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