segunda-feira, 27 de junho de 2022

MISÉRIA HUMANA

 


(Poucas e seguramente nada expressivas palavras são as que consigo articular para vos dar conta da minha mais profunda tristeza e indignação associada aos casos da morte por maus tratos da Jéssica lá para os lados de Setúbal e já hoje da morte de um bebé de poucos meses, encontrado em sofrimento respiratório num caixote do lixo na freguesia de Belas. Poderíamos passar uma semana inteira ou mais a dissecar as razões próximas de tão infaustos acontecimentos de violência sobre as crianças. Tenho as minhas ideias sobre o assunto, mas não é tempo de as expor. Por agora, gostaria simplesmente de registar que, em Portugal, das coisas boas e más, persistem situações alarmantes de miséria humana, que passam ocultas pelas grelhas mais finas de indicadores sociais. Certamente que terão falhado muitas coisas e procedimentos e protocolos diversos. Mas o que me importa hoje aqui destacar é a miséria humana oculta nestas situações.)

Habituados a disciplinar a nossa consciência e a limitar ao máximo a perceção das evidências que nos perturbam o sossego do espírito, nós urbanos, especialistas ou não nestas dimensões da convivência humana, tendemos a refugiar-nos em indicadores, relatórios, estudos de caso, programas de intervenção e outras variáveis. Se é verdade que há picos insuportáveis de privação material, como aconteceram na brutal abordagem à crise das dívidas soberanas e à nossa bancarrota externa, a consciência crítica diz-nos que vamos evoluindo. Mas também sabemos que há uma dimensão estrutural de pobreza que persiste apesar de todos os esforços da política social e compreendemos que se trata de algo preocupante que sacrifica gerações inteiras. Mas raríssimas vezes fazemos o esforço, o que não é o caso dos verdadeiros militantes sociais do terreno e não dos indicadores ou dos relatórios, de tentar cavar nessa pobreza estrutural e tentar perceber de que é que se alimenta e reproduz.

Se o fizéssemos encontraríamos vidas disfuncionais, situações profundas de miséria humana, mergulhadas em escolhas cujos parâmetros não somos capazes de sequer reconhecer que se colocam a muita gente. Subjacente à morte da Jéssica, está uma comparação absurda e dantesca entre o valor de uma dívida e o valor da vida de uma criança. Não sou sequer capaz de imaginar as escolhas que levaram alguém a colocar um bebé de meses num caixote do lixo, como se de um detrito humano se tratasse.

É isto que me amargura e que está para lá de todos os indicadores, relatórios e estudos sobre a evolução da nossa problemática social.

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