(Devo dizer que, em bom rigor, a demissão, aceite por
António Costa, da ministra da Saúde Marta Temido não me apanhou de surpresa.
Percebia-se que as condições da governação estavam a deteriorar-se a grande
velocidade e, embora não me interessem de todo as inúmeras notícias sobre o que
verdadeiramente António Costa pensava de uma possível demissão, não era difícil
imaginar que tudo estaria preso por fios bem débeis. A morte de uma grávida, em
parte associada à situação estrutural da organização deficiente dos serviços de
urgência de ginecologia e obstetrícia, terá feito o restante. Esta demissão, talvez anunciada, gera em mim uma mistura algo indefinida de
sensações. Primeiro, sempre me impressionou a resistência e a inteligência
emocional de Marta Temido e ninguém poderá esquecer que ela foi a ministra da
pandemia, isso bastaria para ter a minha admiração. Segundo, bem para lá da
demissão da ministra, a sensação que fica é a de uma situação global do SNS e
da saúde em geral em Portugal de uma tal complexidade que corremos o sério
risco de estar instalado um triturador de ministros ou ministras e, por muito sagaz
que António Costa seja em proteger-se, com reflexos na estabilidade da
governação. Por isso, para lá do sossego a que Marta Temido terá direito, o
turbilhão de problemas em que se desgastou permanece intacto, aguardando os
desenvolvimentos dos próximos episódios.)
Já por repetidas vezes expressei neste blogue a tese de
que os problemas estruturais do SNS e da saúde em geral em Portugal, no momento
concreto em que estamos, não são resolúveis apenas no plano doutrinário e
programático. Explicitando, o meu caso concreto explica esta minha posição. Doutrinaria
e ideologicamente sou um claro defensor do sistema público de saúde, na medida
em que entendo que esse modelo é o que melhor pode assegurar os preceitos
constitucionais do acesso equitativo aos serviços e aos cuidados de saúde. Mas
quando se equaciona uma abordagem que se pretende eficaz à situação estrutural
existente, descontrolada nos últimos tempos, tenho de combinar essa visão
doutrinária e programática com a ponderação do real estado do sistema, sobre o
qual devo construir uma proposta de solução. Ora, nessa situação concreta, para
o mal e para o bem, existe instalado um setor privado de saúde, talvez desproporcionado
em relação ao seu papel e ele também com fortes necessidades de reestruturação
(destruição criadora?), que embora nos possa custar face aos nossos princípios,
tem de integrar a equação do problema. Não importa agora discutir que fatores
conduziram a essa relevância do setor privado. Dirão alguns que, paradoxalmente,
esse incentivo veio do setor público (ADSE), em parte isso é verdade. Mas
recordo que, numa economia de mercado como aquela em que nos encontramos,
existem seguros de saúde, individuais e voluntários ou por força de contratos
de empresa e isso bastaria, em função da dimensão da procura, para atrair o
investimento privado.
A existência desta realidade e não de uma outra,
imaginária, em que o SNS se desenvolveria sem mancha de concorrência, como
parecem por vezes o Bloco de Esquerda e o PCP admitirem nas suas propostas,
exerce uma forte influência no comportamento agencial dos profissionais de saúde,
sim porque para lá da vocação os agentes de saúde também respondem a incentivos.
E sabemos que os profissionais de saúde (médicos e enfermeiros) quando prestam
serviço no setor privado aceitam sem grande resistência as regras de gestão,
por vezes até fortemente restritivas e condicionadoras, quando há ecos de que a
aceitação de regras de gestão e eficiência no setor público impostas pelas
respetivas administrações hospitalares suscitam forte resistência. E para lá de
toda a deontologia médica sabemos também que a relação de um profissional de
saúde com os meios auxiliares de diagnóstico não é a mesma no setor público e
no setor privado. No setor público, o profissional tem o dever de parcimónia na
solicitação de exames auxiliares. No setor privado, todos temos a sensação de realizarmos
mais exames auxiliares do que o necessário. Percebam as razões.
O absurdo a que se chegou no sistema público,
particularmente nos sistemas de urgências, de remunerar médicos tarefeiros com
valores claramente acima dos profissionais integrados no sistema é uma
evidência do caos a que se chegou. A irracionalidade do sistema de incentivos
que resulta desta prática acaba por minar toda a vontade em defender o sistema
público. O que verdadeiramente espanta é como foi possível chegar a esta situação,
sem que as estruturas de planeamento pensassem as soluções mais adequadas. Não
é difícil imaginar que o sistema necessita de uma completa revisão dos
incentivos remuneratórios, com um regime de exclusividade verdadeiramente compensador
e atrativo, ao mesmo tempo que se estabelecem valores rigorosos quanto ao que
significa a formação de um profissional no setor público. Existem já evidências
de que algum setor privado poderá ele próprio começar a formar profissionais.
Nada a opor a isso. Mas em grande medida a situação ainda mais frequente é a do
recrutamento no setor público sem que este seja ressarcido do forte investimento
em formação realizado.
Para complicar ainda mais a leitura de toda esta situação
estrutural, percebe-se também que a gestão do sistema não é homogénea em qualidade.
Não tenho acompanhado a formação das equipas de gestão das diferentes ARS, mas
pelo que se vai ouvindo e lendo, existem diferenças assinaláveis entre unidades
hospitalares e entre desempenhos das próprias ARS. Por isso, não entendi bem
(não sei se a ideia foi da Ministra) a proposta do tal Gestor do Sistema, uma
peça que parece sancionar a ideia de que as ARS não servem para nada. Imagino
que tal como sucede no sistema de ensino superior, as unidades mais eficientes
se vejam condenadas a ter de pagar as ineficiências ou incompetências de
outras.
Finalmente, se bem que alguns dos meus amigos médicos não
concordem comigo, continuo não convencido de que o número de médicos existentes
em Portugal seja suficiente. A minha convicção deriva de estarmos numa economia
de liberdade individual e em que, por isso, o número de médicos não constitui
um número que qualquer ditador/planeador, mesmo que benevolente, possa gerir a
seu belo prazer, distribuindo-os pelo território em função das necessidades. Existem
incentivos e existe a liberdade individual de reagir a esses incentivos por
parte de médicos e enfermeiros. Continuo a não compreender a exceção: por que
raio de razão os médicos terão de ser os únicos profissionais não sujeitos a um
fenómeno de excesso de oferta de qualificações como pode acontecer numa
economia de mercado aos engenheiros, advogados ou economistas? Como é que pode
ser contrariada a resistência (natural, em função da formação curricular?) dos
médicos a exercer atividade em territórios com menor concentração de massa
crítica de profissionais e de atos médicos.
São reflexões que explicam os meus mixed feelings acerca
da saída de Marta Temido, à qual como Cidadão e defensor do sistema público de
saúde agradeço reconhecido o tempo e dedicação que dedicou a esta tarefa algo
inglória de dirigir politicamente a saúde em Portugal.