quarta-feira, 24 de agosto de 2022

PUTIN E A UNIÃO SOVIÉTICA

                                                                                 


(Já todos compreendemos que durante demasiado tempo o mundo andou distraído sobre a verdadeira natureza dos desígnios de Putin, porque na prática ignorou o seu pensamento e porque também o estudo sobre a cultura russa passara de moda na expectativa de que a afirmação do digital consagrasse a força da globalização. O namoro e os casamentos mais despudorados entre o ocidente e os oligarcas russos, com Londres à cabeça dessa estratégia, talvez simbolizassem a ideia de que trazendo os oligarcas para o mundo do capitalismo o mundo estaria a quebrar as resistências da velha alma russa. A invasão da Ucrânia colocou a descoberto o pensamento do autocrata russo, clarificando sinais fornecidos pelo próprio Putin em diferentes momentos e que agora, compreensivelmente, adquirem todo um outro significado. Como tenho vindo a sistematizar neste blogue, o pensamento do autocrata russo aponta para uma conceção do mundo russo, frequentemente designado de Russki Mir, que reporta a algo bem anterior à criação da União Soviética em dezembro de 1922 e talvez reacendido após a dissolução desta última. Isso explica a reduzida presença do modelo União Soviética nas tomadas de posição pública de Putin, embora a sua dissolução tenha no discurso do autocrata um lugar especial pois ela cavou para além da perda de território experimentada pela atual Federação Russa. E explica também que nos seus discursos públicos mais importantes o autocrata não se tenha coibido de criticar nomes como Lenine e o próprio Estaline por cedências de território, o primeiro mexendo com a entrega do Dombass à Ucrânia e o segundo a parte oriental da Polónia à mesma Ucrânia.

A criação da União Soviética em 1922 na base de um modelo de repúblicas com uma referência étnica bem marcada, correspondendo na origem a um conjunto de seis entidades, a República Federada Russa Soviética e Socialista, a Ucrânia, a Bielorússia e a Federação Transcaucasiana formada pela Geórgia, pela Arménia e pelo Azarbeijão. Putin criticou em público os protagonistas da revolução russa de 1917 pela excessiva autonomia (link aqui) concedida a estas Repúblicas, autonomia que tem de ser entendida na época como a resposta encontrada por Lenine e Estaline para compensar a dimensão marcadamente étnica das seis entidades, algumas das quais elas próprias Federações. No pensamento de Putin, essa dimensão étnica apaga-se em detrimento da valoração da chamada alma russa imperial, a qual constituiria uma dimensão identitária mais forte do que a referida dimensão étnica.

Branko Milanovic (link aqui) acrescenta a esta dimensão explicativa uma outra que vê a União da Repúblicas Socialistas Soviéticas (a URSS) mais como um princípio de qualquer coisa do que como um fim em si. Essa outra qualquer coisa não pode deixar de ser a natureza intrinsecamente internacionalista da revolução proletária. O modelo é assim construído não como um estado acabado, mas pelo contrário como um processo em aberto e pronto para acolher outros representantes. Não podemos ignorar que à época se desenvolviam revoluções inspiradas pelos acontecimentos de 1917 em países como a Alemanha, a Áustria e a Hungria, o que parecia constituir o início de algo mais ambicioso.

Obviamente que todo esse processo definhou e que o que se apresentava como um processo aberto se transformou em algo de fechado e de autoperpetuação sistemática não olhando a meios para a sua consumação.

Quando ouvimos Putin nos seus discursos mais ideológicos e percebemos as suas mais profundas influências (como o filósofo teorizador do fascismo Ivan Illyn), intui-se que para ele a União Soviética (URSS) foi um intermezzo com maus resultados para os seus princípios. Daí a trágica e violenta reescrita da história com que o autocrata procura subjugar a Ucrânia, não compreendendo que esta também tem a sua própria leitura da história, que não coincide obviamente com o pretenso ressurgimento da alma russa.

Neste contexto, assistiremos seguramente a um novo interesse pela história destes tempos e destas civilizações, abandonando de vez a ilusão de que a globalização digital reduziu a escombros tais memórias.

Sem comentários:

Enviar um comentário