(A publicação pelo Eurostat dos dados de maio do presente ano sobre o indicador do excesso de mortalidade, calculado relativamente à média de um período anterior, neste caso 2016-2019, causou algum impacto, já que Portugal, para além de revelar um crescimento do indicador pelo quarto mês consecutivo, apresenta o valor mais elevado nos 27 da União, com um valor de 19%, seguido da Grécia e da Irlanda, respetivamente, com valores de 17 e 13%, contrastando significativamente com os 6,6% de média na União. Como alguém do Instituto Ricardo Jorge o disse acertadamente a propósito destes números, não será num período de 4 meses que pode analisar-se seriamente o problema da mortalidade excessiva. Não será esse, por isso, o propósito deste post, mas tão só o de sugerir alguns elementos de reflexão para memória futura.)
O indicador calculado pelo Eurostat, que faz parte aliás do European Statistical Recovery Dashboard (https://ec.europa.eu/eurostat/cache/recovery-dashboard/, é por várias razões influenciado pelos efeitos da pandemia. Em primeiro lugar, no seu denominador, o período de referência respeita a 2016-2019, precisamente antes de se manifestarem os graves efeitos pandémicos. Depois no seu numerador, onde são inscritos os valores da mortalidade observada, há toda uma série de efeitos que se prolongam no tempo e que podem, por exemplo, estar associados ao não acompanhamento de patologias graves durante os períodos de confinamento mais musculado que se traduzem depois em mortalidade mais precoce. Temos ainda o efeito das ondas de calor que agravam obviamente as condições de mortalidade excessiva. Por conseguinte, podemos submeter a análises mais rigorosas várias hipóteses de trabalho, com incidência marcadamente conjuntural, que podemos reportar à tempestade perfeita que representou termos de uma assentada uma pandemia, ondas de calor e degradação das condições económicas associadas aos efeitos da guerra na Ucrânia.
Mas não era esse o ponto que me interessava inscrever para memória futura de reflexão pertinente.
O meu ponto estava mais focado em questões de natureza mais estrutural às quais temos dedicado pouca atenção, sem a conveniente adaptação dos sistemas de políticas públicas de proteção social.
Estou a referir-me especificamente à crescente vulnerabilidade estrutural de uma parte significativa da população portuguesa que resulta da triangulação de três causas – o envelhecimento, o isolamento de uma grande parte dessa população e o sério agravamento das condições socioeconómicas desses grupos de população. Costumamos associar os problemas do envelhecimento à bondosa ideia do aumento da esperança de vida à nascença, muitas vezes ignorando que o aumento dessa esperança de vida (que o COVID veio inverter) não tem uma correlação perfeita com os índices de qualidade de vida que é possível alcançar com esse prolongamento da vida. Mas quando o envelhecimento se junta ao dramático isolamento dos que não têm a sorte de prolongar a vida ao mesmo tempo que a das suas (seus) companheiras (os), as condições estruturais de vulnerabilidade profunda agudizam-se. A degradação das condições económicas de vida projeta-se nessa vulnerabilidade, agudizando-a para níveis ainda não plenamente estudados.
Sem embargo de estudos mais aprofundados e com um espectro mais amplo de variáveis explicativas possíveis, creio que os dados da mortalidade excessiva do Eurostat trazem-nos um alerta poderoso: a sociedade portuguesa está a aprofundar o seu estado de vulnerabilidade estrutural, determinada pela combinação do fenómeno do envelhecimento e do isolamento físico e social, sobre o qual a nuvem negra da desigualdade projeta por si todo um mundo de efeitos.
A capacidade das políticas públicas internalizarem a abordagem a essa profunda vulnerabilidade, ao mesmo tempo que capitalizamos a melhoria de outros indicadores como o aumento da população entre os 25 e os 34 anos que tem formação superior, no qual estamos já acima dos valores médios da União, é para mim um dos grandes desígnios do nosso futuro coletivo.
É necessário colocar a abordagem a esse desafio no centro da agenda política.
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