terça-feira, 16 de agosto de 2022

A SÉRVIA E OS SÉRVIOS

                                                                                     


(Para gente como eu que nunca teve o prazer de viajar pelos Balcãs, quando percecionamos a Sérvia e os Sérvios vêm-nos à cabeça três referências, a velha Jugoslávia de Tito, a fratricida guerra que a fraturou para sempre e Kusturica que melhor do que ninguém protagoniza o sentido excessivo da vida que por aquelas paragens se alimenta. Por estes tempos, numa Sérvia que odeia profundamente o que a NATO significa e é difícil esquecer os bombardeamentos de 1999, que mantém viva a ilusão da adesão à União Europeia e que conserva relativamente à Rússia de Putin uma das mais descaradas dualidades que é hoje possível reconhecer no mundo, talvez valha a pena não perder de vista que a Sérvia pode integrar o complexo xadrez desestabilizador que Putin tem preparado para confundir o ocidente ...)

Ainda hoje temos uma extrema dificuldade de compreender duas coisas: as razões pelas quais a Jugoslávia se desmoronou e, integrando o que soubemos a posteriori, como foi possível manter tal unidade durante tanto tempo. O equilíbrio que foi possível estabelecer nos Balcãs após a guerra fratricida é do tipo n vezes subótimo, já que muitos têm a perceção de que um simples acaso pode reacender velhos ódios, enterrados até mais ver. O não reconhecimento pleno do Kosovo por um conjunto de países, entre os quais a Sérvia, está aí para nos lembrar que muitos personagens tiveram de engolir em seco o fecho das negociações para a paz.

A dualidade do pronunciamento político da Sérvia relativamente à União Europeia e a Putin faz parte claramente do conhecimento deste último. É conhecido que a condenação da invasão russa da Ucrânia pelo governo sérvio talvez tenha irritado o autocrata russo, mas tal impressão foi rapidamente compensada pela recusa do mesmo governo em aplicar sanções à Rússia. O que me faz pensar que, no xadrez de desestabilização da União Europeia que Putin terá engendrado para retaliar contra a inequivocamente significativa quebra de produto interno bruto que as sanções do ocidente irão determinar para a economia russa, a Sérvia constitui uma peça, não sabemos se um simples peão, se algo mais ambicioso.

A situação dos Sérvios que vivem no Kosovo em tensão permanente continua a ser uma fonte de profunda instabilidade. Por estes dias, um pequeno caso administrativo, a obrigatoriedade imposta pelas autoridades locais do Kosovo de proibir as matrículas de automóveis sérvios incendiou os ânimos, registando-se a recusa dos Sérvios residentes em acatar essa deliberação, com o argumento de que isso equivaleria a reconhecer a existência oficial do Kosovo que o governo Sérvio não aceita de todo. Pode ser considerado um fenómeno insignificante, mas quando a tensão latente está instalada qualquer acontecimento por mais irrelevante que seja pode incendiar os ânimos.

Até agora o atual líder do governo Sérvio, Aleksander Vucic, tem-se esmerado em equilíbrios de posicionamento, dando uma no cravo outra na ferradura em relação a Putin e sobretudo no esforço de conter os Sérvios mais radicais residentes no Kosovo e na Bósnia Herzegovina. Ou seja, manifestando o seu desejo da opção Europeia e simultaneamente fazendo flique-flaques de vário tipo para não cortar com a Rússia, tendo em conta algumas dependências como a energética.

Mas uma coisa bem diferente é o exercício pelo governo Sérvio da gestão dessa dualidade, outra coisa bem diferente é a possibilidade de Putin inscrever a Sérvia no seu próprio xadrez desestabilizador.

Por isso, no meu modesto entender, a questão do alargamento da União Europeia está condenada a transformar-se num confronto para todo o sempre entre duas ideias: alargar para conter as contradições ou alargar com o grave risco de trazer as contradições para dentro e com isso precipitar mais aceleradamente a sua implosão. Confesso que já me inclinei para o primeiro argumento, mas hoje começo a ficar convencido da bondade do segundo.

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