(Não sabemos se a degradação das condições de saúde de Mikhail Gorbachev que precipitaram a sua morte terá ou não permitido que ele se apercebesse da invasão Russa da Ucrânia e transformações que ela provocou no país invadido, na Rússia invasora e no mundo, particularmente na Europa. A morte de Gorbachev, alguém tão saudado a ocidente pelo caminho de liberdade que abriu a muita gente, quando interpretada do ponto de vista da Rússia e de todos os países que integraram a ex-União Soviética, lança-nos num dos exemplos de maior perplexidade e complexidade interpretativa da história, sobretudo do leste europeu. A pergunta com que me debato e que deixo como mote do post de hoje pode resumir-se assim: alguém tem ideia de como foi possível endogenamente e a partir do coração da burocracia política soviética abrir caminho a uma personalidade que, para o mal e para o bem, consoante os posicionamentos das partes em presença, fica historicamente associada à queda e dissolução da União Soviética?)
Pela questão enunciada percebe-se que em meu entender não está em causa o papel crucial que Gorbachev assumiu na transformação radical do relacionamento este-oeste, lançando o mundo então soviético numa vertigem de transformações, que o abalaram, mas também abalaram o relacionamento com o ocidente. Se as transições a partir daí operadas nos mostraram com evidência segura de que não é indiferente o contexto a partir do qual se constroem a liberdade de mercado e economias a ela adaptadas e que também nos interroguemos como explicar a evolução realizada até chegarmos ao impasse de hoje com a autocracia de Putin, isso não apaga a pertinência da minha questão. Como é que uma burocracia instalada, politicamente vigiada, endossa uma dinâmica interna que coloca Gorbachev no poder e a sua própria dissolução? Podemos ensaiar a mobilização das estafadas saídas do materialismo histórico, as tão faladas contradições internas, combinadas com o isolamento internacional então vigente, para tentar uma explicação. Mas rapidamente percebemos que é frágil essa orientação, até porque não existe conhecimento suficientemente aprofundado para dar corpo ao argumento. Talvez possamos falar de acumulação de transformações e de pronunciamentos endógenos das sociedades sob controlo soviético, separadas no tempo, é certo, como fatores de precipitação do observado. Hungria, República Checa e Polónia foram países que protagonizaram na repressão daquele controlo movimentos importantes que terão antecipado o inevitável, mas continuamos a não saber ligar tais efeitos à ascensão de Gorbachev.
Não me interessa de todo o exercício do contrafactual histórico que consistiria em perguntar se a personalidade de Gorbachev fosse diferente, mais musculada e capaz de controlar repressivamente a transformação, como o faz por exemplo Branko Milanovic num curioso artigo de avaliação histórica do personagem, o que poderia ter acontecido de diferente na dissolução da União Soviética.
Interessa-me mais, sobretudo atendendo à proliferação de estruturas políticas burocrático-autoritárias por todo o mundo, tentar compreender as razões para que nesses contextos tão vigiados possam emergir personalidades que são sementes de dissolução de tais estruturas.
A barreira cultural que nos separa do mundo que permitiu a ascensão de Gorbachev penaliza fortemente a nossa capacidade de compreensão, embora admita que possam surgir na interpretação da história contemporânea novas inspirações.
Mas em matéria de sucessões inesperadas e de perplexidades interpretativas a União Soviética é um manual. E a esse propósito, Milanovic tem uma peça notável (link aqui). Cito-a:
“Mas em matéria de políticas de sucessão na Rússia, a lição parece mais clara: Estaline não poderia ter imaginado que alguém como Khrushchev (a quem tratava como um caipira rural não muito esperto) pudesse suceder-lhe; nem Khrushchev imaginaria que o belo Leonid pudesse engendrar um golpe interno contra ele; Andropov fez um mau julgamento sobre Gorbachev, que por sua vez subestimou Yeltsin. Yeltsin escolheu Putin para uma tarefa, mas recebeu algo totalmente diferente. Quem nos garante que Putin sozinho não cometa um erro semelhante?”.
O mundo fascinante das burocracias repressivas e autoritárias.
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