Como já terão reparado alguns dos nossos fiéis mais atentos, o meu colega de blogue e eu somos, ao nosso modo, two of a kind; para todos os devidos efeitos, incluindo semelhanças (muitas) e diferenças (algumas). Vem isto a propósito do funesto desaparecimento de Ana Luísa Amaral (ALA), a mulher, a cidadã e a poetisa que ambos tanto apreciávamos/admirávamos e sobre a qual ele já aqui deixou escrito um post que pessoalmente subscreveria à linha (“Quem vai agora explicar-me a poesia do mundo?”). Assim sendo, e querendo forçosamente associar-me ao coro de lamentos que por estes dias têm dominado o espaço público nacional, limito-me a subscrever com comoção o dito, registo agradado o tanto de belo que sobre ALA se tem escrito e opto apenas pela iniciativa de reproduzir dois dos muitos poemas de ALA que ajudam a ilustrar a qualidade, a sensibilidade e a pujança do seu legado: “Ode à diferença” e “Um pouco de Goya: Carta a minha Filha”. Obrigado, Ana Luísa!
ODE À DIFERENÇA
Felizmente.
Somos todos diferentes. Temos todos
o nosso espaço próprio de coisinhas
próprias, como narizes e manias,
bocas, sonhos, olhos que vêem céus
em daltonismos próprios. Felizmente.
Se não o mundo era uma bola enorme
de sabão e nós todos lá dentro
a borbulhar, todos iguais em sopro:
pequenas explosões de crateras iguais.
Assim e felizmente somos todos
diferentes. Se não a terapia
em grupo era um sucesso e o que é certo
é sermos mais felizes a explorar
solitários o nosso próprio espaço
de manias, de traumas, de unhas dos pés
invaloradas pela nossa cultura
(que lá no Oriente o pé é o caso sério,
motivo sensual e explorativo).
Começa por aí: o mundo di-
vidido por atávicos ritmos
― e outras coisas somenos como guerras
ou fomes (Note Bem: a criatura
é céptica e tem um gosto péssimo,
mas veja-se outros textos que redimem
em sério o que aqui diz. Cf. por ex.
o que quiser, mas deixe a criatura
regalar-se por se pensar ― coitada ―
incómoda e sonora). Prova evidente
de que somos diferentes, felizmente.
Começa por aí: no mundo divi-
dido ― e continua em raças e
raízes. Nós somos portugueses,
tão felizes, com tanta história atrás
e tantos feitos, tantas coisinhas próprias
de delícia: o mar que nos gerou,
e o resto tudo, são bolas pequeninas
de sabão a atestar da diferença
do nosso irmão do lado, esse infeliz
cheio de recalques de tradições e línguas,
paella e calamares. Tem boca como
nós: não canta o fado. Tem pernas como
nós: não dança o vira. Contenta-se
― coitado ― com flamencos chorados
e falanges doridas. Somos todos
diferentes, felizmente (Note Bem:
se a sua paciência ainda não
fugiu despavorida ― é sem dê,
mas ela insiste em respeitar
o ritmo ―]: isto que a criatura
repete e reafirma, quando em quando,
não deve ser tomado em ligeireza
como sinal senil [aliterou!],
mas como tentativa suicida
de oferecer unidade ao que o não tem,
moralizar o texto a pouco e pouco,
dar-lhe uma ideia igual, ser um mote
formal a contrabalançar a tal
prova evidente. Que de diferenças
estamos todos cheios e isto
pretendia-se uma ode e não foi).
Felizmente.
UM POUCO SÓ DE GOYA: CARTA A MINHA FILHA
Lembras-te de dizer que a vida era uma fila?
Eras pequena e o cabelo mais claro,
mas os olhos iguais. Na metáfora dada
pela infância, perguntavas do espanto
da morte e do nascer, e de quem se seguia
e porque se seguia, ou da total ausência
de razão nessa cadeia em sonho de novelo.
Hoje, nesta noite tão quente rompendo-se
de junho, o teu cabelo claro mais escuro,
queria contar-te que a vida é também isso:
uma fila no espaço, uma fila no tempo,
e que o teu tempo ao meu se seguirá.
Num estilo que gostava, esse de um homem
que um dia lembrou Goya numa carta a seus
filhos, queria dizer-te que a vida é também
isto: uma espingarda às vezes carregada
(como dizia uma mulher sozinha, mas grande
de jardim). Mostrar-te leite-creme, deixar-te
testamentos, falar-te de tigelas — é sempre
olhar-te amor. Mas é também desordenar-te à
vida, entrincheirar-te, e a mim, em fila descontínua
de mentiras, em carinho de verso.
E o que queria dizer-te é dos nexos da vida,
de quem a habita para além do ar.
E que o respeito inteiro e infinito
não precisa de vir depois do amor.
Nem antes. Que as filas só são úteis
como formas de olhar, maneiras de ordenar
o nosso espanto, mas que é possível pontos
, espelhos e não janelas.
E que tudo está bem e é bom: fila ou
novelo, duas cabeças tais num corpo só,
ou um dragão sem fogo, ou unicórnio
ameaçando chamas muito vivas.
Como o cabelo claro que tinhas nessa altura
se transformou castanho, ainda claro,
e a metáfora feita pela infância
se revelou tão boa no poema. Se revela
tão útil para falar da vida, essa que,
sem tigelas, intactas ou partidas, continua
a ser boa, mesmo que em dissonância de novelo.
Não sei que te dirão num futuro mais perto,
se quem assim habita os espaços das vidas
tem olhos de gigante ou chifres monstruosos.
Porque te amo, queria-te um antídoto
igual a elixir, que te fizesse grande
de repente, voando, como fada, sobre a fila.
Mas por te amar, não posso fazer isso,
e nesta noite quente a rasgar junho,
quero dizer-te da fila e do novelo
e das formas de amar todas diversas,
mas feitas de pequenos sons de espanto,
se o justo e o humano aí se abraçam.
A vida, minha filha, pode ser
de metáfora outra: uma língua de fogo;
uma camisa branca da cor do pesadelo.
Mas também esse bolbo que me deste,
e que agora floriu, passado um ano.
Porque houve terra, alguma água leve,
e uma varanda a libertar-lhe os passos.
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