segunda-feira, 8 de agosto de 2022

ANA LUÍSA AMARAL

Como já terão reparado alguns dos nossos fiéis mais atentos, o meu colega de blogue e eu somos, ao nosso modo, two of a kind; para todos os devidos efeitos, incluindo semelhanças (muitas) e diferenças (algumas). Vem isto a propósito do funesto desaparecimento de Ana Luísa Amaral (ALA), a mulher, a cidadã e a poetisa que ambos tanto apreciávamos/admirávamos e sobre a qual ele já aqui deixou escrito um post que pessoalmente subscreveria à linha (“Quem vai agora explicar-me a poesia do mundo?”). Assim sendo, e querendo forçosamente associar-me ao coro de lamentos que por estes dias têm dominado o espaço público nacional, limito-me a subscrever com comoção o dito, registo agradado o tanto de belo que sobre ALA se tem escrito e opto apenas pela iniciativa de reproduzir dois dos muitos poemas de ALA que ajudam a ilustrar a qualidade, a sensibilidade e a pujança do seu legado: “Ode à diferença” e “Um pouco de Goya: Carta a minha Filha”. Obrigado, Ana Luísa!

 

ODE À DIFERENÇA

 

Felizmente.

Somos todos diferentes. Temos todos

o nosso espaço próprio de coisinhas

próprias, como narizes e manias,

bocas, sonhos, olhos que vêem céus

em daltonismos próprios. Felizmente.

Se não o mundo era uma bola enorme

de sabão e nós todos lá dentro

a borbulhar, todos iguais em sopro:

pequenas explosões de crateras iguais.

Assim e felizmente somos todos

diferentes. Se não a terapia

em grupo era um sucesso e o que é certo

é sermos mais felizes a explorar

solitários o nosso próprio espaço

de manias, de traumas, de unhas dos pés

invaloradas pela nossa cultura

(que lá no Oriente o pé é o caso sério,

motivo sensual e explorativo).

Começa por aí: o mundo di-

vidido por atávicos ritmos

― e outras coisas somenos como guerras

ou fomes (Note Bem: a criatura

é céptica e tem um gosto péssimo,

mas veja-se outros textos que redimem

em sério o que aqui diz. Cf. por ex.

o que quiser, mas deixe a criatura

regalar-se por se pensar ― coitada ―

incómoda e sonora). Prova evidente

de que somos diferentes, felizmente.

Começa por aí: no mundo divi-

dido ― e continua em raças e

raízes. Nós somos portugueses,

tão felizes, com tanta história atrás

e tantos feitos, tantas coisinhas próprias

de delícia: o mar que nos gerou,

e o resto tudo, são bolas pequeninas

de sabão a atestar da diferença

do nosso irmão do lado, esse infeliz

cheio de recalques de tradições e línguas,

paella e calamares. Tem boca como

nós: não canta o fado. Tem pernas como

nós: não dança o vira. Contenta-se

― coitado ― com flamencos chorados

e falanges doridas. Somos todos

diferentes, felizmente (Note Bem:

se a sua paciência ainda não

fugiu despavorida ― é sem dê,

mas ela insiste em respeitar

o ritmo ―]: isto que a criatura

repete e reafirma, quando em quando,

não deve ser tomado em ligeireza

como sinal senil [aliterou!],

mas como tentativa suicida

de oferecer unidade ao que o não tem,

moralizar o texto a pouco e pouco,

dar-lhe uma ideia igual, ser um mote

formal a contrabalançar a tal

prova evidente. Que de diferenças

estamos todos cheios e isto

pretendia-se uma ode e não foi).

Felizmente.

 

 UM POUCO SÓ DE GOYA: CARTA A MINHA FILHA

 

Lembras-te de dizer que a vida era uma fila?

Eras pequena e o cabelo mais claro,

mas os olhos iguais. Na metáfora dada

pela infância, perguntavas do espanto

da morte e do nascer, e de quem se seguia

e porque se seguia, ou da total ausência

de razão nessa cadeia em sonho de novelo.

Hoje, nesta noite tão quente rompendo-se

de junho, o teu cabelo claro mais escuro,

queria contar-te que a vida é também isso:

uma fila no espaço, uma fila no tempo,

e que o teu tempo ao meu se seguirá.

Num estilo que gostava, esse de um homem

que um dia lembrou Goya numa carta a seus

filhos, queria dizer-te que a vida é também

isto: uma espingarda às vezes carregada

(como dizia uma mulher sozinha, mas grande

de jardim). Mostrar-te leite-creme, deixar-te

testamentos, falar-te de tigelas — é sempre

olhar-te amor. Mas é também desordenar-te à

vida, entrincheirar-te, e a mim, em fila descontínua

de mentiras, em carinho de verso.

E o que queria dizer-te é dos nexos da vida,

de quem a habita para além do ar.

E que o respeito inteiro e infinito

não precisa de vir depois do amor.

Nem antes. Que as filas só são úteis

como formas de olhar, maneiras de ordenar

o nosso espanto, mas que é possível pontos

, espelhos e não janelas.

E que tudo está bem e é bom: fila ou

novelo, duas cabeças tais num corpo só,

ou um dragão sem fogo, ou unicórnio

ameaçando chamas muito vivas.

Como o cabelo claro que tinhas nessa altura

se transformou castanho, ainda claro,

e a metáfora feita pela infância

se revelou tão boa no poema. Se revela

tão útil para falar da vida, essa que,

sem tigelas, intactas ou partidas, continua

a ser boa, mesmo que em dissonância de novelo.

Não sei que te dirão num futuro mais perto,

se quem assim habita os espaços das vidas

tem olhos de gigante ou chifres monstruosos.

Porque te amo, queria-te um antídoto

igual a elixir, que te fizesse grande

de repente, voando, como fada, sobre a fila.

Mas por te amar, não posso fazer isso,

e nesta noite quente a rasgar junho,

quero dizer-te da fila e do novelo

e das formas de amar todas diversas,

mas feitas de pequenos sons de espanto,

se o justo e o humano aí se abraçam.

A vida, minha filha, pode ser

de metáfora outra: uma língua de fogo;

uma camisa branca da cor do pesadelo.

Mas também esse bolbo que me deste,

e que agora floriu, passado um ano.

Porque houve terra, alguma água leve,

e uma varanda a libertar-lhe os passos.

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