quinta-feira, 11 de agosto de 2022

A FEIRA

                                                                             


(Agosto avança a passo rápido, nevoeiros por companhia, a exigir manta na cama e camisola ou casaco nas manhãs como a de hoje, em que escrevo no deck fronteiro a Caminha, com os primeiros raios de sol a irromperem pelas nuvens e a banharem aquela encosta evidência do mau urbanismo (dizia alguém próximo que o fim do mundo era quando houvesse casas nos montes e faltasse água nas fontes), com a música da Argerich como companhia no TIDAL do computador. Por isso, dando tempo a que o sol vença a sua timidez, há tempo para pensar nos exercícios de imaginação de ocupação que o nevoeiro estimula. A feira ou as feiras semanais pertencem a esse campo de descoberta de outros tempos de ocupação. Ontem foi dia de feira em Caminha, sábado será em Vila Nova de Cerveira e assim passa o tempo.)

Penso há anos no fenómeno que as feiras representam. Tanto poderei falar no singular universal, como nas feiras particulares e concretas, como a de ontem em Caminha ou mais regularmente na de Vila Nova de Cerveira.

As férias são um fenómeno inclusivo e integrador. Assim, podemos ver tanto as senhoras, espanholas ou nacionais, mais sofisticadas a disputar o produto de ocasião, seja um vestido de linho ou algodão, seja a toalha mais atraente, como a personagem mais popular a explorar qual garimpeiro mais ousado as montanhas de tecidos, tea-shirts e outros produtos a preços de exceção. Tudo numa santa convivência em torno do consumo de ocasião.

As feiras são o oposto da xenofobia emergente. Imensas famílias ciganas ocupam os espaços de venda com outros vendedores sem um conflito que seja, com os seus produtos próprios, marcas e imitações para todos os gostos, num festival de pregões e chamamentos ao consumo que dão à feira um toque inconfundível.

As feiras são um pequeno microcosmos do “nosso” empreendedorismo. Muitos dos vendedores que animam o espaço da feira já são mais pequenos empresários do que simples feirantes. A forma hábil e diferenciada com que lidam com os diferentes consumidores (portugueses e espanhóis), como fixam os preços, como escolhem os “trends” de moda e produtos, como gerem stocks e encontram os pontos de abastecimento constituem processos onde se formam competências empresariais e de venda. E onde assistimos à formação de economias familiares, revelando aqui e ali rejuvenescimento de lideranças. As feiras são, à nossa escala, uma espécie de equivalente do armazém chinês que povoa os nossos centros urbanos.

As feiras reproduzem a memória histórica do comércio e da troca. Estou convencido que grande parte da dinâmica de participação e frequência que as feiras ainda hoje revelam representa a transposição para os tempos de hoje de uma memória de comércio e de troca, que ficou geneticamente associado à nossa existência. Claro que hoje vemos cada vez menos a deliciosa migração semanal de gente da aldeia ou da montanha que vem à feira vender os seus produtos e abastecer-se, uma reminiscência da troca direta de tempos ancestrais.

As feiras transformam as vilas e centros urbanos nos dias em que se realizam. Sim, nesses dias é um grande problema encontrar estacionamento e lugar nas esplanadas. Por isso, é fundamental a qualidade da infraestruturação do espaço em que se realizam (Vila Nova de Cerveira bem melhor do que Caminha), bem como o ordenamento dos espaços circundantes. E é também essencial o modo como, feira terminada, as brigadas de limpeza municipais atuam (grandes melhorias nesta dimensão já foram concretizadas).

As feiras são ainda um espaço de melhoria e inovação na qualidade. Sim, sobretudo no domínio dos produtos alimentares (queijos, enchidos, principalmente) há muito para fazer e recordo-me sobretudo das pequenas feiras de queijos em alguns “arrondissements” de Paris ou de centros urbanos perdidos na periferia francesa, como o modelo a seguir.

O nevoeiro já praticamente se dissipou sobre a encosta de Caminha, mas Santa Tecla permanece totalmente encoberto, nem sequer dá para simular a fotografia do costume.

Receio que a praia tenha de ficar para mais tarde. Recordo-me do saudoso Arquiteto Duarte Castel-Branco que, a braços com problema semelhante em São Martinho do Porto, o local de eleição das suas férias, afirmava que nevoeiro e imaginação casavam bem. Sempre percebi bem porquê.

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