quinta-feira, 25 de agosto de 2022

MAS AFINAL A RÚSSIA AGUENTA OU NÃO AGUENTA?

                                                                                        


                                             (The Economist, edição de 27 de agosto de 2022)

(Considero que a questão dos efeitos concretos provocados à economia russa pelas sanções do mundo ocidental lançadas na sequência da invasão da Ucrânia é uma das histórias pior contadas dos últimos tempos. O nevoeiro que paira sobre tal matéria e a desinformação que por aí circula têm gerado um profundo gap entre a mediatização das sanções e a perceção rigorosa dos seus efeitos, seja no alvo das mesmas, a economia russa, seja na origem, mais propriamente nos países que aderiram ao seu lançamento. Tenho-me visto grego para selecionar as fontes mais credíveis, já que o domínio da informação não filtrada sobre a economia e o sistema bancário e financeiro russos não é para todos e, como é conhecido, o regime russo deixou de publicar informação anteriormente disponibilizada, invocando segredos de Estado e de guerra, sobretudo em domínios como transferências internacionais de indivíduos, exportações de energia ou despesas em importação de produtos manufaturados. E, finalmente, não devemos ignorar que, no plano macroeconómico e da banca central, Putin é servido por gente de muita qualidade técnica e académica, facto reconhecido pela grande generalidade dos analistas sobre a economia russa.

Uma das razões que explica as interrogações que subsistem sobre os efeitos das sanções, para além do efeito ricochete que é um assunto incómodo para a gestão das expectativas da opinião pública ocidental, deve-se ao facto da sua mediatização inicial não ter acautelado devidamente a necessidade de tempo para a produção de efeitos. No afã inicial da reação enérgica com que se pretendeu responder à invasão russa, as sanções foram apresentadas como se de um rocket se tratasse e a verdade é que eram armas de deflagração muito lenta. A elevada complexidade técnica das matérias sobre as quais assenta o racional das sanções penaliza ainda mais a sua divulgação e, por isso, não admira que entre a força mediática das sanções anunciadas e o real efeito das mesmas sobre a economia russa exista hoje um desfasamento notório. Ou seja, as sanções mais divulgadas não são nem de perto nem de longe as mais eficazes para condicionar o autocrata russo. O caso mais evidente desse notório desfasamento é o fornecido pelas sanções dirigidas aos oligarcas russos, sobre as quais pendia aliás uma errada interpretação do papel e influência que os mesmos exercem sobre o coração do regime de Putin. O argumento de que a ofensiva sobre os oligarcas tenderia a condicionar a tomada de decisão de Putin revelou-se uma completa falácia e não corresponde a uma interpretação correta do poder autoritário que habita o Kremlin. Em relação com esta complexidade, não podemos ignorar que a União Europeia já vai creio eu no sétimo pacote de sanções o que é um indicador de que terreno estamos a falar.

Em matéria tão complexa, a revista The Economist tem-se destacado em meu entender no ir além da espuma mediática.

A revista britânica tem seguido uma prática sistemática de desenvolver para cada tipologia de sanções um corpo de informação com sucessivos testes de credibilidade. Assim, por exemplo, nas sanções contra os oligarcas russos que a revista considera as menos efetivas em termos de impactos, a revista estima que cerca de 50 milhares de milhões de dólares terão sido atingidos em termos de congelamento, mas convém recordar que a estimativa do total sujeito a essas sanções apontava para 400 milhares de milhões de dólares. Ou seja, apenas um oitavo terá sido atingido o que mostra que neste jogo do gato e do rato (ratões neste caso) o sistema está preparado mais para proteger os ratões do que os perseguidores. Algures no tempo, algum dos oligarcas encarregar-se-á de explicar o arsenal de práticas evasivas. E convirá ter presente que, em muitos casos, a concretização das sanções depende de decisões de entidades privadas, gestoras de marinas por exemplo em relação aos Yates de luxo, e se há matéria que estas personalidades dominam a preceito é o valor mercantil de como se contornam tais decisões.

O segundo grupo de sanções, as chamadas medidas financeiras, através das quais se pretendeu atingir o sistema financeiro central russo, desconectando-o do sistema de transferências internacional, encerra uma tal complexidade que este vosso Amigo declina qualquer responsabilidade interpretativa. Reitero apenas que a hipocrisia reinante neste domínio é apreciável, com por exemplo o Gasprombank a não ser desconectado do sistema SWIFT e percebemos bem porquê. Não também por acaso o sistema de transferências entre o rublo (Rússia) e o yuan (China) aumentou vertiginosamente de volume e, não sei bem explicar porquê, o mesmo não estará a acontecer com a relação entre o rublo (Rússia) e a rupia (Índia). Por agora, a desvalorização forçada do rublo parece controlada e o Banco Central Russo deu-se mesmo ao luxo de moderar a subida da taxa de juro de referência, que tinha chegado aos 20% e que pelo mês de julho se fixou nos 8% (conforme nos refere Matthew Klein no The Overshoot).

Penso que o Economist está cheio de razão quando aponta as restrições comerciais e sobretudo o controlo das exportações para a Rússia como o grupo de sanções mais eficaz.

Esta é de facto a matéria que mais me interessa, sobretudo pela extrema novidade com que a economia russa estará presentemente a desenvolver o seu processo de substituição de importações. Temos assim uma espécie de substituição de importações “al revés”. Explico-me. A moderna substituição de importações recorre à tecnologia externa mais moderna para desenvolver as suas próprias soluções de produção nacional. Ora, a Rússia deixou de poder seguir esse modelo, pois o mundo desenvolvido não lhe fornece essa tecnologia. Temos assim uma “substituição de importações regressiva”, e a expressão foi brilhantemente cunhada por Branko Milanovic. A produção de novo armamento não pode recorrer a consumos intermédios anteriormente fornecidos pelo ocidente (algo extensivo à manutenção aeronáutica, pelo que a segurança da aviação russa deixará muito a desejar nos próximos tempos), se bem que a China e outras economias emergentes possam ensaiar o preenchimento desse mercado. Mas não devemos ignorar que as sanções se estendem a exportadores que possam utilizar software e utensílios americanos. Ou será por mero acaso que a Huawei tem reduzido a sua exposição à economia russa?

Mattew Klein acrescenta dois elementos estatísticos importantes: “a produção Russa de máquinas de lavar e de frigoríficos terá diminuído mais de 50% e a montagem de automóveis terá descido 90%”.

Se combinarmos esta substituição de importações regressiva com a mais que provável saída de talentos (os que forem sensíveis aos valores da democracia) estará aqui a principal ameaça que as sanções ocidentais estarão a provocar na economia russa. Mas também esses efeitos não são imediatos. A informação oficial russa tudo fará para ocultar esses efeitos de longo prazo. O que combinado com a ideia de que o povo Russo é um sofredor nato (aguenta, aguenta) tenderá a diluir as sombras do futuro.

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