terça-feira, 30 de agosto de 2022

A DEMISSÃO – MIXED FEELINGS

                                                                           


(Devo dizer que, em bom rigor, a demissão, aceite por António Costa, da ministra da Saúde Marta Temido não me apanhou de surpresa. Percebia-se que as condições da governação estavam a deteriorar-se a grande velocidade e, embora não me interessem de todo as inúmeras notícias sobre o que verdadeiramente António Costa pensava de uma possível demissão, não era difícil imaginar que tudo estaria preso por fios bem débeis. A morte de uma grávida, em parte associada à situação estrutural da organização deficiente dos serviços de urgência de ginecologia e obstetrícia, terá feito o restante. Esta demissão, talvez anunciada, gera em mim uma mistura algo indefinida de sensações. Primeiro, sempre me impressionou a resistência e a inteligência emocional de Marta Temido e ninguém poderá esquecer que ela foi a ministra da pandemia, isso bastaria para ter a minha admiração. Segundo, bem para lá da demissão da ministra, a sensação que fica é a de uma situação global do SNS e da saúde em geral em Portugal de uma tal complexidade que corremos o sério risco de estar instalado um triturador de ministros ou ministras e, por muito sagaz que António Costa seja em proteger-se, com reflexos na estabilidade da governação. Por isso, para lá do sossego a que Marta Temido terá direito, o turbilhão de problemas em que se desgastou permanece intacto, aguardando os desenvolvimentos dos próximos episódios.)

Já por repetidas vezes expressei neste blogue a tese de que os problemas estruturais do SNS e da saúde em geral em Portugal, no momento concreto em que estamos, não são resolúveis apenas no plano doutrinário e programático. Explicitando, o meu caso concreto explica esta minha posição. Doutrinaria e ideologicamente sou um claro defensor do sistema público de saúde, na medida em que entendo que esse modelo é o que melhor pode assegurar os preceitos constitucionais do acesso equitativo aos serviços e aos cuidados de saúde. Mas quando se equaciona uma abordagem que se pretende eficaz à situação estrutural existente, descontrolada nos últimos tempos, tenho de combinar essa visão doutrinária e programática com a ponderação do real estado do sistema, sobre o qual devo construir uma proposta de solução. Ora, nessa situação concreta, para o mal e para o bem, existe instalado um setor privado de saúde, talvez desproporcionado em relação ao seu papel e ele também com fortes necessidades de reestruturação (destruição criadora?), que embora nos possa custar face aos nossos princípios, tem de integrar a equação do problema. Não importa agora discutir que fatores conduziram a essa relevância do setor privado. Dirão alguns que, paradoxalmente, esse incentivo veio do setor público (ADSE), em parte isso é verdade. Mas recordo que, numa economia de mercado como aquela em que nos encontramos, existem seguros de saúde, individuais e voluntários ou por força de contratos de empresa e isso bastaria, em função da dimensão da procura, para atrair o investimento privado.

A existência desta realidade e não de uma outra, imaginária, em que o SNS se desenvolveria sem mancha de concorrência, como parecem por vezes o Bloco de Esquerda e o PCP admitirem nas suas propostas, exerce uma forte influência no comportamento agencial dos profissionais de saúde, sim porque para lá da vocação os agentes de saúde também respondem a incentivos. E sabemos que os profissionais de saúde (médicos e enfermeiros) quando prestam serviço no setor privado aceitam sem grande resistência as regras de gestão, por vezes até fortemente restritivas e condicionadoras, quando há ecos de que a aceitação de regras de gestão e eficiência no setor público impostas pelas respetivas administrações hospitalares suscitam forte resistência. E para lá de toda a deontologia médica sabemos também que a relação de um profissional de saúde com os meios auxiliares de diagnóstico não é a mesma no setor público e no setor privado. No setor público, o profissional tem o dever de parcimónia na solicitação de exames auxiliares. No setor privado, todos temos a sensação de realizarmos mais exames auxiliares do que o necessário. Percebam as razões.

O absurdo a que se chegou no sistema público, particularmente nos sistemas de urgências, de remunerar médicos tarefeiros com valores claramente acima dos profissionais integrados no sistema é uma evidência do caos a que se chegou. A irracionalidade do sistema de incentivos que resulta desta prática acaba por minar toda a vontade em defender o sistema público. O que verdadeiramente espanta é como foi possível chegar a esta situação, sem que as estruturas de planeamento pensassem as soluções mais adequadas. Não é difícil imaginar que o sistema necessita de uma completa revisão dos incentivos remuneratórios, com um regime de exclusividade verdadeiramente compensador e atrativo, ao mesmo tempo que se estabelecem valores rigorosos quanto ao que significa a formação de um profissional no setor público. Existem já evidências de que algum setor privado poderá ele próprio começar a formar profissionais. Nada a opor a isso. Mas em grande medida a situação ainda mais frequente é a do recrutamento no setor público sem que este seja ressarcido do forte investimento em formação realizado.

Para complicar ainda mais a leitura de toda esta situação estrutural, percebe-se também que a gestão do sistema não é homogénea em qualidade. Não tenho acompanhado a formação das equipas de gestão das diferentes ARS, mas pelo que se vai ouvindo e lendo, existem diferenças assinaláveis entre unidades hospitalares e entre desempenhos das próprias ARS. Por isso, não entendi bem (não sei se a ideia foi da Ministra) a proposta do tal Gestor do Sistema, uma peça que parece sancionar a ideia de que as ARS não servem para nada. Imagino que tal como sucede no sistema de ensino superior, as unidades mais eficientes se vejam condenadas a ter de pagar as ineficiências ou incompetências de outras.

Finalmente, se bem que alguns dos meus amigos médicos não concordem comigo, continuo não convencido de que o número de médicos existentes em Portugal seja suficiente. A minha convicção deriva de estarmos numa economia de liberdade individual e em que, por isso, o número de médicos não constitui um número que qualquer ditador/planeador, mesmo que benevolente, possa gerir a seu belo prazer, distribuindo-os pelo território em função das necessidades. Existem incentivos e existe a liberdade individual de reagir a esses incentivos por parte de médicos e enfermeiros. Continuo a não compreender a exceção: por que raio de razão os médicos terão de ser os únicos profissionais não sujeitos a um fenómeno de excesso de oferta de qualificações como pode acontecer numa economia de mercado aos engenheiros, advogados ou economistas? Como é que pode ser contrariada a resistência (natural, em função da formação curricular?) dos médicos a exercer atividade em territórios com menor concentração de massa crítica de profissionais e de atos médicos.

São reflexões que explicam os meus mixed feelings acerca da saída de Marta Temido, à qual como Cidadão e defensor do sistema público de saúde agradeço reconhecido o tempo e dedicação que dedicou a esta tarefa algo inglória de dirigir politicamente a saúde em Portugal.

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