segunda-feira, 29 de agosto de 2022

POPULISMO E JORNALISMO

                                                                            


(Por via de um tweet perdido na modorra final de agosto, enquanto preparava o regresso a casa, tropecei com uma gentileza da revista PROSPECT, link aqui, que publicou na íntegra uma conferência, a lecture Mac Taggart 2022 que não é uma conferência mas um testemunho de uma profissional da comunicação britânica, Emily Maitlis, presença central no Newsnight da BBC2, por agora apresentadora de um podcast radiofónico global o The News Agents. Já há muito tempo que não via uma profissional de mão cheia do jornalismo e da comunicação expor-se com tanta frontalidade, refletindo profundamente sobre um tema em torno do qual existe em Portugal uma hipócrita e profunda apatia, com exceção, é bom recordá-lo, da voz sempre crítica do José Pacheco Pereira que não se tem cansado de confrontar a comunicação portuguesa com essa sua incapacidade de dissertar sobre o momento em que trabalha).

O tema da lecture proferida por Emily Maitlis assenta num título de grande alcance e que nos devia acompanhar nesta navegação por tempos tão estranhos como os que vivemos hoje – We have to stop normalising the absurd (Temos de deixar de normalizar o absurdo). A jornalista britânica explica que o título lhe veio à cabeça recordando uma exortação que o editor de Maitlis em Londres, Ian Katz, lhe fizera no preciso momento em que se instalara o choque de novembro de 2016 com a vitória de Trump nas eleições americanas – “Não normalizes este momento”.

Obviamente que o tema discutido na conferência é a relação entre o jornalismo e o populismo reinante, com toques ou não de autoritarismo. Normalmente, a perspetiva que este tema ou relação são abordados centra-se no possível contributo que o jornalismo, de boa ou má qualidade não importa, assume na generalização da mensagem e dos protagonistas populistas. Maitlis não enjeita esse ângulo de abordagem mas centra-se corajosamente na reflexão sobre a influência que o populismo estará a exercer no exercício da própria profissão, interrogando-se se todos os profissionais conscientes estarão devidamente a problematizar essa questão.

Emily Maitlis traz a este debate recordatórias fundamentais para o centrar e não deixar entrar em derivas que ela considera perigosas para a democracia e o conjunto de casos e episódios invocados a partir da política britânica são suficientemente incisivos para compreender a preocupação da jornalista. Uma das recordatórias que vem mais ao encontro do meu próprio pensamento é a errada perceção de que o populismo corresponde a uma ideologia (um “ismo”) como o marxismo, socialismo, liberalismo, neoliberalismo ou outra qualquer. O populismo não corresponde a qualquer crença ou política. Limita-se, maliciosamente, a estabelecer uma diferença entre a pureza do povo e a corrupção da elite, não sendo mais do que uma estratégia para ganhar ou preservar o poder. Ele pode lançar as suas amarras a partir de um qualquer processo eleitoral, mas acedendo ao poder continuará indefinidamente em campanha. Perentória, Maitlis fecha bem a questão: “Não é uma ideologia. É simplesmente um meio para atingir e conservar o poder”.

Ora, esta é uma distinção fundamental que todo o jornalismo não corruptamente comprometido com os valores do populismo deveria ter em conta. Como o populismo não é uma ideologia e apenas uma estratégia para tomar o poder não tem qualquer sentido sujeitá-lo a critérios de equidade jornalística. Como a própria Maitlis refere a partir da sua própria experiência, em plena campanha do BREXIT, os jornalistas britânicos sabiam que sem dificuldade poderiam reunir uma massa elevada de economistas com argumentos válidos para rejeitar o BREXIT, ao passo que lhes era extremamente difícil e penoso encontrar gente estruturada que defendesse o argumento contrário. Não obstante essa evidência, mantinham essa tonta preocupação de garantir a equidade de tratamento.

No quadro da estratégia populista há uma outra variável que Maitlis denuncia com coragem que é a tentativa deliberada com várias expressões de desacreditar jornalistas com toda a série de truques, falsas notícias e mobilização da guerrilha das redes sociais. Os jornalistas são mulheres e homens com as suas imperfeições, mas o objetivo é simplesmente este: quando esses jornalistas denunciarem irregularidades ou patifarias dos protagonistas populistas, os efeitos do descrédito provocado defenderão em última instância os infratores. Afinal, os jornalistas não pertencem à pureza do povo mas à corrupção da elite. Trump foi exímio nesta estratégia de utilização das “fake news” como instrumento de descrédito de profissionais da comunicação.

Esta conferência de Emily Maitlis deveria ser peça obrigatória de estudo nas escolas e nos cursos de jornalismo, sobretudo em torno das questões assinaladas neste post. Uma outra parte da conferência trata da não menos inquietante sucessão de atropelos democráticos na política britânica, com destaque para o infame caso do assessor de Boris Johnson Dominic Cummings e para a demissão de independência que atingiu indelevelmente a BBC, mas isso é matéria para uma outra reflexão.

Afinal, a questão é bem simples. Normalizar o absurdo é o princípio do fim da democracia.

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