sexta-feira, 24 de junho de 2022

SOBRE A GOVERNAÇÃO

 


(Na festa de aniversário que, já há longos anos, é também a minha festa de S. João, em cavaqueira amena após “entradinhas” e sardinha assada, alguém me perguntava qual era a minha perceção global e possível da governação atual, por estes tempos tão objeto das mais variadas críticas, sobretudo da agitação mais agressiva que grassa pelas redes e pela comunicação social mais tradicional. A pergunta teve para mim uma grande utilidade, sobretudo porque me obrigou a sistematizar pensamento disperso e pouco organizado, procurando ir assim além da espuma de cada dia. Este post é a primeira tentativa, outros provavelmente irão acontecer, de pensar sobre o assunto.)

A primeira ideia sistemática que se formou na minha cabeça pode resumir-se neste ponto: a governação em Portugal da atual maioria, por mais abalada que tenha sido com a questão das urgências de ginecologia e obstetrícia e por isso mais pressionado pelas “coisas” internas, tem vivido essencialmente um período de foco externo, compreensível e bem caracterizado – guerra da Ucrânia, disrupções mundiais, reação da União Europeia, recomposição da NATO. Quer isto significar que a questão das urgências de obstetrícia foi simplesmente uma antecipação do choque de realidade interna com que a governação de António Costa irá ser confrontada nos tempos mais próximos. Claro que não sabemos com que intensidade o choque externo irá apresentar-se nos tempos mais próximos. Talvez a ofensiva russa desacelere dada a exaustão de recursos, mas seguramente outros pontos de conflito irão emergir. O que poderá acontecer no território de Kalinegrado, que na minha primeira e única viagem aos países bálticos já me tinha impressionado, mostra que não será por ausência de combustível de conflito que o choque externo irá ser amortecido.

Depois deste ponto de ordem, pensei por que vias e caminhos construo a minha perceção da governação. Essencialmente por duas vias.

A primeira deriva diretamente da perceção sobre a governação que resulta da minha atividade profissional de planeamento e de avaliação de políticas públicas. Regra geral é uma perceção indireta. Vamo-nos apercebendo pela evolução dos dossiers e das orientações de governação como ela funciona. Reconheço que se trata de um campo privilegiado para formação de perceções. Dá frequentemente para perceber a dissonância que existe entre o que passa pela comunicação social e pelas suas agendas do momento e efetivamente o que vai mexendo. Outras vezes, através de contactos mais diretos com os agentes políticos dá para formar uma perceção mais direta. Na qualidade que me atribuo já há longo tempo de “reflective practitioner”, ou seja de alguém que teoriza ou reflete a partir da sua própria prática profissional e dos contactos com a sua “comunidade de práticas”, continuo a achar que o jornalismo em Portugal é preguiçoso até à medula. As suas agendas poderiam ser construídas com muito mais sólida informação. Por isso, enquanto me aguentar nas canetas, não irei abdicar deste campo de perceções.

A segunda via coloca-me em igualdade de circunstâncias com o cidadão anónimo, pelo menos com aquele que recorre mais à comunicação social do que às redes sociais. Assistiremos nos próximos tempos a um recrudescimento deste campo. O governo de António Costa acaba de recrutar João Cepeda para tratar da comunicação dos assuntos da governação. Pago para ver. Só posso dizer que estou com um mau pressentimento do que vai passar-se. As diferenças entre a cosmética comunicacional e a avaliação efetiva do que vai sendo feita são ténues e claramente “fuzzy”. O risco de que a cosmética se sobreponha é elevado. E não foi só Sócrates a praticá-lo.

Começo então pela primeira via de construção de perceções.

Mesmo antes de se ter observado a maioria absoluta do PS e, por maioria de razão, depois dela se ter instalado com novo Governo, o PRR e a programação plurianual de Fundos Europeus (Acordo de Parceria PT 2030) dominaram obviamente a questão da governação. E aqui há uma história para contar. Todo o processo começou no Governo anterior. Nesse elenco governativo, predominava a figura do Ministro do Planeamento Nélson de Souza, aqui e ali contraposta com a agenda própria do então Ministro da Economia Pedro Siza Vieira e pela por vezes inconsequente impetuosidade e rebeldia de Ana Abrunhosa, que se ocupava da coesão territorial. Quem conheceu de perto a enorme competência de Nélson de Souza sabe da sua propensão para o controlo centralizado e desconfiança para quem não está no seu “inner circle”. Para controlar todo o processo e apoiando-se no calendário da União Europeia e do primeiro-Ministro, o então ministro do Planeamento deu prioridade absoluta ao PRR. E, mais do que atribuir-lhe prioridade máxima, concedeu-lhe o estatuto de caráter disruptivo. Por ali se financiaria o que seria mais inovador. A mensagem que Nélson de Souza passou em relação à programação plurianual dos Fundos Europeus resumiu-se ao seguinte: continuidade seletiva com aprendizagem do observado no PT2020, sem grandes ondas disruptivas. Daí que durante algum tempo a programação plurianual progrediu em fogo lento e sem uma liderança política clara para uma definição atempada das grandes questões em que a aprendizagem do PT 2020 seria crucial.

Tudo isto se alterou com o novo Governo (em que Nélson Souza não está e em que dos três agentes atrás referidos só Ana Abrunhosa resistiu) e com o vendaval da guerra da Ucrânia e alteração radical do contexto macroeconómico.

Lendo politicamente a nova estrutura e orgânica do Governo, imaginei que Mariana Vieira da Silva iria ser a nova inteligência e liderança do processo de preparação do novo período de programação. Confesso que fiquei inicialmente mais sossegado. Tenho a melhor das impressões da sua visão e capacidade de trabalho, tem uma perspetiva muito abrangente da atividade governativa e admiti que iria ser confrontado com progressos visíveis na matéria.

À medida que me tenho confrontado com os contornos definitivos da programação plurianual, tenho a sensação estranha de um vazio de supervisão, difícil de entender, sobretudo do ponto de vista do que terão sido os constrangimentos emergentes para uma consequência mais direta do que penso ser a ação motora de Mariana Vieira da Silva.

Vou assinalar aqui neste post apenas alguns tópicos, não só porque a minha consciência profissional dita-me algumas reservas, mas também porque me reservo de, noutras oportunidades e contextos, manifestar de forma frontal, como sempre o faço, as minhas perplexidades:

  • Começo por manifestar de forma intensa a minha perplexidade com a gestão incompreensivelmente lenta da preparação do novo PO Temático nacional “Demografia, Qualificações e Inclusão”, em que serão fundidos dois importantes PO do PT 2020, o do Capital Humano e o da Inclusão Social e Emprego; pelos ruídos de “mentideros” lisboetas que me têm chegado, tem sido mais intensa a disputa pela gestão desse PO do que propriamente a configuração do seu caráter inovador e integrador;
  • Pelo que se vai sabendo, de demografia só o título e não se percebe como é que a programação do PO acolherá um dos grandes desígnios da programação 2030 – o combate ao declínio demográfico;
  • Após uma euforia comunicacional, ainda no tempo de Pedro Siza Vieira, sobre o tema da transformação digital e das necessidades de formação de competências que ela acarreta, dá a impressão qu após a euforia se sucedeu a apatia e a indiferença, não se percebendo a existência de qualquer impulso político para liderar e levar a cabo a transformação digital, para além da dimensão infraestrutural (redes de banda larga de elevada capacidade) cujo financiamento foi acolhido pelos Programas Regionais;
  • Os Programas Operacionais Regionais das regiões da convergência, Norte, Centro, Alentejo e Açores, registam uma significativa diminuição dos Fundos FEDER alocados à I& empresarial e transferência de conhecimento e ao investimento produtivo empresarial em geral, redução que ninguém ainda me conseguiu explicar com pés e cabeça; depois da gritaria em torno do PRR de que poucos recursos eram alocados às empresas, estou perplexo com o silêncio absoluto e total quanto à redução dos recursos para as empresas nos PO regionais;
  • Regressando aos PO regionais, foi de novo assumida neste período de programação a irritante opção de uma arquitetura única para esses PO, independentemente dos esforços que cada Região (CCDR) realizou para construir as suas estratégias regionais; o que significa que a aprendizagem com o PT 2020 é simplesmente uma palavra de cosmética; e também estou perplexo com a apatia e silêncio dos stakeholders regionais: será que estão por tudo ou já foram comprados um a um?
  • Todas as estratégias regionais praticamente sem exceção, aliás seguindo as preocupações dos primeiros documentos do governo sobre a matéria, dedicaram forte atenção ao declínio demográfico e à maior resiliência territorial; olho para as versões dos PO que foram submetidos a Bruxelas e constato que demografia nem vê-la;
  • Finalmente, continua a ser um mistério se a nova programação irá finalmente proporcionar um equilíbrio mais sensato entre formação inicial de jovens e formação contínua de adultos e ativos empregados; os atrasos do novo mega PO acentuam esse mistério e os PO regionais não auguram muito boa coisa em termos de formação contínua.

Por hoje basta, numa palavra diria que em matéria de governação tudo “va de soi”. O conselho de Nélson de Souza sobre a continuidade da experiência do PT 2020 parece ter-se imposto, o que não deixa de ser irónico atendendo à sua saída do Governo. Será esta inércia do conhecimento de Mariana Vieira da Silva?

Noutros posts ensaiarei complementar esta reflexão com a minha perceção a partir da comunicação social. O Expresso de hoje traz imenso material relevante. Até lá.

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