(O meu colega de ofício blogueiro já registou e bem para memória futura a novidade da vitória eleitoral da esquerda na Colômbia, novidade essa que tem várias leituras possíveis e era sobre isso que gostaria de dedicar algumas reflexões. Tenho a vida facilitada porque, entretanto, na espuma do rescaldo eleitoral colombiano, surgiram-me duas posições de escritores, Vargas Llosa que não é colombiano e Juan Gabriel Vásquez, esse sim colombiano, que são a inspiração certa para esta minha reflexão.)
Comecemos por Vargas Llosa. Nos últimos tempos de polarização política exacerbada, há escritores de que gosto muito, literariamente falando, e que para serem lidos o tenho de fazer com um grande poder de abstração das suas posições públicas em matéria política. Vargas Llosa é um deles. A qualidade e o génio literário estão lá intactos, mas de quando em vez o Nobel peruano atira-nos com tomadas de posição política de estarrecer. Compreendo que a evolução das ditaduras populistas de esquerda latino-americanas não pode ficar impune à crítica feroz e que Vargas Llosa tem hoje uma conceção liberal do mundo, visível por exemplo no longo diálogo com García Márquez, que foi dos textos que mais me impressionaram e cativaram dos últimos tempos. Dizem as más línguas que o contacto íntimo com o mundo de Isabel Preysler e da socialite da Hola terá contribuído para essa evolução de pensamento. Não vem mal ao mundo por isso e não tenho dificuldade em subscrever a grande maioria das críticas mordazes que Vargas Llosa tem desferido contra a deriva antidemocrática de muita da esquerda latino-americana, de que por exemplo os exemplos da Venezuela e da Nicarágua são as ilustrações mais trágicas.
Mas no caso dos resultados eleitorais na Colômbia, que foram brindados por Vargas Llosa com uma displicente afirmação de que o Colombianos votaram mal, a situação é diferente, sobretudo atendendo ao que estava em confronto na decisão eleitoral do passado domingo. O candidato de esquerda Gustavo Petro confrontava-se com um populista construído nos ambientes do Tik-Tok, Rodolfo Hernández, sem a mínima consciência dos limites da exclusão social e da falta de solidariedade. Por isso, quando Vargas Llosa acusa os Colombianos de terem votado mal, isso significa plena conformidade com os valores que Hernández tenderia a defender. Convenhamos que diabolizar as derivas da esquerda latino-americana tem os seus limites e desta vez vargas Llosa ultrapassou conscientemente esses limites.
Tem por isso algum significado o artigo de um outro escritor que nos últimos tempos me tem deliciado, Juan Gabriel Vásquez, que está nos antípodas de Vargas Llosa.
Creio que já me referi neste blogue ao grande livro que Olhar para Trás é. Esta obra de Vásquez é um autêntico “fresco” romanceado sobre a vida do cineasta colombiano Sergio Cabrera, que existe e não pertence ao mundo da ficção, em torno da qual Vásquez reflete sobre a deriva para o fanatismo da guerrilha colombiana e nos traz em paralelo uma visão inesperada sobre a China de Mao e as suas próprias derivas.
Mas não é para falar do Olhar para Trás de Vásquez que me traz aqui hoje, mas para registar, em contraponto à diletante afirmação de Llosa, a interpretação que o escritor colombiano realiza do resultado eleitoral à esquerda do passado domingo.
Refere Gabriel Vásquez que, com uma exceção pontual de um governo liberal em 1934 de Alfonso López Pumarejo, cujo programa se designava Revolução em Marcha, a Colômbia nunca teve um governo de esquerda e anti-americano. A explicação é óbvia e Vásquez sintetiza-a brilhantemente: “Pois bem, há que recordar que estas guerrilhas – FARC, ELN, EPL, siglas que fazem parte da nossa memória, para entender a razão de não ter havido governos de esquerda na Colômbia. Porque esses movimentos armados e violentos, que com os anos se degradaram até chegar a extremos inconcebíveis de crueldade e sevícia, fizeram com que na sociedade colombiana fosse impossível falar de esquerda e adicionar democrática”.
Ora, se a interpretação de Gabriel Vásquez está certa, como penso que está, então o significado da vitória de Gustavo Petro é ainda mais valioso (não descorando a não valia da alternativa que se colocava nas urnas). Não só o tempo da memória da guerrilha está esbatido, como provavelmente, e Gabriel Vásquez, aliás na sequência do Olhar para Trás, muito bem o evidenciou, a sociedade colombiana está sequiosa de paz. É tempo de esquecer a guerrilha e apagar as razões que determinaram a sua emergência, não esquecendo a sua deriva para o fanatismo. Grande parte dos apoiantes do Pacto Histórico que conduziu à vitória de Petro é protagonizada por gente que se envolveu fortemente nos caminhos da paz colombiana.
Neste contexto, tem algum sentido afirmar que os Colombianos votaram mal?
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