sexta-feira, 10 de junho de 2022

O QUE FAZER COM A GLOBALIZAÇÃO?

 



(Há dias, com a cobertura mediática internacional que lhe é conhecida, o economista americano Joseph Stiglitz referia-se ironicamente à dissonância cognitiva que se abateu sobre a grande maioria dos participantes do Encontro de Davos (link aqui). Afinal, gente que defendeu por todos os meios a globalização e as suas potenciais virtualidades entregava-se agora à justificação de que é necessário “desglobalizar”, emergindo para isso com terminologias já conhecidas, como a do “reshoring” e lançando outras como a do “friendly shoring”, porque como os economistas sabem, quando não se sabe o que dizer, o melhor é avançar com expressões para “épater le bourgeois” e outros morcões. Como Stiglitz também o assinala, dissonâncias cognitivas como estas significam sempre afirmações vagas para entreter jornalistas. Talvez o tempo da gente atarefada que se passeia pelos corredores de Davos fosse melhor utilizado aproveitando a oportunidade para discutir profundamente os erros da globalização e assim evitar uma desglobalização precoce e desajustada, que em meu entender não interessa de modo algum a países de pequena e média expressão territorial como Portugal.)

A força das opiniões públicas nacionais conduziu a grande maioria dos políticos internacionais e dos economistas que os assessoram a renegar tudo quando era fé nos benefícios da globalização. Princípios de ouro como a gestão just in time e a gestão lean sucumbiram de repente face às disrupções violentas das cadeias de valor globais e da oferta e disponibilidade de consumos intermédios como chips e outras componentes, que primeiro a pandemia e depois a invasão Russa da Ucrânia provocaram. Com uma crise energética e outra alimentar em cima desta disrupção, os arautos da globalização viraram os fatos do avesso e passaram a defender, para sossegar as respetivas opiniões públicas, o regresso a formas de produção nacional, a constituição de stocks e reservas de precaução, cedendo ao princípio aparentemente inalienável de que toda a coisa a ser produzida o deve ser no local em que a relação produtividade-custo a torne mais eficiente. Ou seja, toda a réplica de localização e produção menos eficiente deve ser rejeitada.

Trump já tinha trazido para a economia americana o discurso nacional e pacóvio do “reshoring”, que volta agora a ser acenado, ameaçando mesmo as empresas americanas que não o fizessem com sanções que nunca saíram do papel. A emergência de outro conceito, o “renear ou friendly shoring” que nem os participantes de Davos ainda percebem bem o que é, mas que não é mais do que uma vã tentativa de protocolar réplicas de produção entre países, procurando assegurar que o Ocidente produtivo se torne menos vulnerável relativamente às cadeias de valor que campeiam lá pelos territórios longínquos da Ásia.

Já antes da pandemia e muito antes do desvario de Putin, um dos indicadores básicos da integração económica mundial, o rácio “Exportações + Importações mundiais/Produto mundial” ou apenas “Exportações mundiais/Produto mundial” tinha estagnado após a Grande Recessão de 2008 e não dava mostras de querer recuperar a tendência de muitos e longos anos. Mas, em contrapartida, um outro rácio “Exportações de serviços/produto mundial” não parava de crescer. Este confronto de indicadores o que nos mostra não é o simples recuo da globalização em direção a uma interrogada “desglobalização”, mas antes a sua recomposição estrutural em função dos padrões de desenvolvimento tecnológico, como aliás sempre aconteceu historicamente nas diferentes combinações de aceleração tecnológica e aprofundamento da integração económica mundial.

A leitura combinada do artigo de Stiglitz, que aponta a Davos o erro de não querer discutir os erros da globalização, com um outro artigo redigido entre outros por um economista que sabe muito destas coisas e que esteve sempre por dentro dos grandes avanços da globalização, Pascal Lamy (link aqui), ganha uma outra expressão e era para essa perspetiva de análise que me interessa conduzir este post. De facto, passar de repente a clamar por uma “desglobalização” representa não só uma forma de má consciência por sempre se terem rejeitado críticas válidas ao aprofundamento da globalização, como constitui uma cedência nacionalisto-populista a impulsos que só interessam aos países de maior dimensão, aderentes ao princípio de que gerir o comércio internacional é uma forma de gerir a guerra.

Pascal Lamy, depois de dirigir entre 2005 e 2013 a Organização Mundial do Comércio e de ter sido Comissário Europeu para o Comércio Externo entre 1999 e 2004, é presente o coordenador da rede do Instituto Delors em Berlim, Bruxelas e Paris, além de presidir ao Forum para a Paz em Paris. Não é por isso uma pessoa qualquer, um desses palradores de circunstância.

O artigo de Lamy e de Nicolas Köhler-Suzuki começa por ser uma síntese de evidência e de números que estão muito além do impulso populista da desglobalização. Anotam o já por mim assinalado diferente comportamento dos fluxos de bens e de serviços e referem o elemento importante de que a economia global precisa de compreender e integrar o estádio diferente de desenvolvimento em que a economia da China está mergulhada, com uma mudança estrutural que tenderá a privilegiar o consumo interno e os serviços. Mesmo o relacionamento USA-China está longe de alinhar pela crispação do discurso político, com os investimentos americanos (e europeus) na China a não serem reduzidos, antes pelo contrário. Lamy e Köhler-Suzuki invocam índices de conectividade e globalização menos conhecidos (DHL Global Connectedeness Index e KOF Globalization Index), para mostrar que a crispação da retórica não alinha com as principais evidências: “em grande medida, a discussão da desintegração mundial está a acontecer em gabinetes de planeamento público, não nas salas de decisão das empresas”.

Entretanto, a força do comércio digital, embora conduzido num mundo de “firewalls” ao rubro, ameaça sobrepor-se a tudo o mais, envolvendo a própria Organização Mundial do Comércio em longas e complexas negociações intergovernamentais, no sentido de tornar firmes algumas regras básicas para este tipo de comércio.

Não pode também ignorar-se como a globalização falhou numa mais equitativa distribuição de vacinas anti-Covid pelo mundo, penalizando os menos desenvolvidos que, agravadamente, têm agora de suportar também os principais custos da disrupção alimentar e da crise energética.

Não se espere, por isso, que o mundo mais pobre e penalizado pela sequência dos acontecimentos (pandemia e guerra da Ucrânia” se coloque disciplinado e obediente ao lado do Ocidente na condenação da invasão Russa. A retórica das boas intenções haverá de chocar sempre com o cinismo e hipocrisia do ocidente mais desenvolvido relativamente ao mundo mais pobre. E não será com retórica das boas intenções que esses países alimentarão as suas desnutridas populações. O Ocidente já é crescidinho que baste para compreender esta evidência.

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