segunda-feira, 13 de agosto de 2018

INVESTIMENTO E SERVIÇOS PÚBLICOS



(A reflexão estava prometida já há algum tempo. Não há propriamente elementos novos de informação que precipitem o cumprimento do compromisso. Há tão só a maior intensidade da perceção sobre a gravidade do problema. Muito provavelmente já não será o orçamento de 2019 que permitirá avançar no início de uma resposta mais consistente. Sendo assim, será tema central de escrutínio das próximas legislativas.)

Nos últimos tempos, à medida que a consistência da geringonça começou a apontar para a conclusão da legislatura (ainda dependente da mais complexa preparação do orçamento de 2019), intensificou-se a cobertura mediática de falhas e de índices de má qualidade de atendimento de serviços públicos. A matéria não tem tratamento fácil. A principal razão é a falta de uma cultura de apresentação de resultados por parte dos serviços públicos. Os sucessivos governos pensam que essa ausência os favorece. Puro engano. No meio de tal ausência, multiplicam-se as manifestações impressivas. Uma cobertura mediática de algo que até pode ser pontual transforma-se rapidamente em perceção global, por mais insuficiente e truncada que se apresente. É, por vezes, deprimente o modo reativo como os governos vão atrás de cada notícia por mais pontual que ela seja. Seria tudo mais simples se houvesse vontade política para validar um sistema de reporte de resultados, que obrigasse a interpretação jornalística a confrontar o apelo do pontual com a medida do estado global da arte em matéria de cobertura e qualidade de atendimento.

O governo do PS com apoio político parlamentar à esquerda não teria de ser exceção a esta regra e não o é, de facto. Até pode dizer-se que o é por maioria de razão, pois alguns dos seus ministros estão mergulhados numa cultura de reatividade que os faz por vezes assumir interpretações da realidade demasiado otimistas quanto ao estado das coisas.

A primeira interpretação de todo este alarido em torno da prestação dos serviços públicos não pode deixar de reconhecer alguma inevitabilidade de efeitos retardados no tempo da consolidação abrupta de contas públicas que o resgate financeiro de 2011 impôs aos sucessivos orçamentos de Estado. Por mais progressos que se tivessem observado até ao resgate em matéria de consolidação do Estado Social e da prestação de serviços públicos, esses progressos teriam de ser sempre assumidos como algo de fortemente dependente do modelo económico gerador indireto de receita pública. Por outras palavras, vulneráveis face a problemas nessa variável. Ora as contas públicas foram submetidas a um duro golpe. Esse golpe foi, na prática, duplo, Por um lado, atingiu duramente as remunerações dos seus funcionários e condições de exercício e progressão nas respetivas carreiras, por maior profissionalismo que esteja instalado, impactando indiretamente por via de motivações as condições de funcionamento dos serviços. Por outro lado, porque o resgate impôs também redução de consumos intermédios (aquisições ao mercado), de investimento público e congelamento de admissões com convergência de efeitos na qualidade e intensidade da prestação pública que não podem ser ignorados.

Mas limitar as justificações aos efeitos do resgate financeiro não é sério. Primeiro, porque em Portugal nenhum governo conseguiu implantar uma prática multianual de orçamentação de investimento público, na qual todo o investimento público deveria inscrever as necessidades de conservação, manutenção e substituição atendendo ao grau prospetivo de utilização. Recordo-me que, em tempos de ministério das Finanças liderado por Fernando Teixeira dos Santos, um antigo colega da FEP, o Professor João Loureiro coordenou um grupo de trabalho para esse efeito. Nunca mais ouvi falar de resultados. Segundo, porque o atual governo do PS assumiu as suas próprias escolhas no quadro da negociação com os seus parceiros à esquerda. Essas escolhas privilegiaram reposições de rendimentos e prestações e não a colocação do investimento público a níveis de cruzeiro. O que temos neste momento são profissionais públicos a recuperar rendimentos mas a suar as estopinhas com condições de funcionamento cada vez mais difíceis de gerir por falta de investimento e limitações de recursos humanos, estas últimas determinadas entre outras coisas por uma desequilibrada distribuição de funcionários pelas entidades e pelos territórios.

No meio deste caldinho, todo o bicho-careta pode dar conta de um mau funcionamento qualquer. Eu próprio, que adquiri viatura nova em abril, estive cerca de 4 meses para receber o documento único de circulação (vulgo livrete) enviado pelo IRN) da dita viatura. Imaginar-se-ia que poderia ter sido atribuível aos correios. Não foi. Por distribuição em função da intensidade de serviço, o DUC foi parar ao IRN de Almodôvar, esteve para lá a marinar em função das férias de um funcionário qualquer e perante insistência telefónica, chegou dois dias depois em correio normal. Desta vez, os CTT não podem ser acusados de incúria.

Como é óbvio, o atual governo poderia ter optado por combinações de reposição de rendimentos mais esticadas no tempo e alguma recuperação de investimento público e não apenas concentrar-se na referida reposição. Pode dizer-se que o governo PS ficou refém das prioridades dos seus apoiantes parlamentares. É sempre o velho problema das escolhas públicas. Apoiante da solução política encontrada, que pode ter valido uma legislatura, nunca escondi uma limitação nessa solução. PCP e Bloco de Esquerda têm uma dificuldade praticamente insuperável para se envolverem em negociações de matérias sobre o próprio modelo económico do país que não estejam direta e imediatamente ligadas a melhoria de rendimentos ou de condições de vida dos cidadãos. Ora, como sabemos, em muitas dimensões do desenvolvimento, essa melhoria de condições exige escolhas públicas cuja manifestação de resultados é diferida no tempo, pois têm prazos de maturação muito longos.

Portugal precisa urgentemente de um quadro prospetivo de médio-longo prazo sobre prioridades de investimento público, que não consiste apenas em programas de infraestruturas e aquisição de equipamentos. Deve também envolver processos de reorganização de serviços e entidades públicas, aproximando o setor público das necessidades dos cidadãos. Não ignoro que, face à pressão da redução e estabilização da dívida pública portuguesa, o ministério das Finanças terá de ter uma palavra determinante nesse processo. Mas o que me parece ser uma forte limitação é a lógica das escolhas públicas de investimento estar limitada ao controlo das Finanças. É necessário criar na sociedade portuguesa e na órbita da decisão ministerial grupos de aconselhamento, com VOZ autorizada, como o já foi o Conselho Superior de Obras Publicas. A influência desses grupos de aconselhamento deve olhar também para o estado deplorável das estratégias de investimento de algumas empresas públicas (com relevo para a CP) e analisar o grau de cumprimento de expectativas de algumas privatizações, feitas em cima do joelho.

Aos municípios caberá também um papel decisivo. Esse papel passa pelo seu envolvimento em lógicas de racionalização de investimento público em espaços supramunicipais, fazendo das CIM o espaço-institucional-chave para praticar essa nova lógica de racionalização.

E fugir ao tema das escolhas é suicida. Estão os Portugueses cientes de que para assegurar um SNS de que se orgulhem e seja capaz de gerir a violenta transição demográfica em que estaremos mergulhados durante décadas terão de renunciar a obras de fachada, infraestruturas sem utilização em prazos decentes de tempo, ao desperdício, ao apoio do Estado em matéria em que podem dar corda aos seus próprios sapatos? Estarão também cientes de que a batalha pela educação e formação ainda não atingiu um ponto morto?

Como é óbvio, esta lógica mais estruturada e prospetiva não significa ignorar as premências da reatividade, intervindo onde os desvios do curto prazo o justifiquem. E sobretudo tornar transparente para a opinião pública sistemas coerentes de medida da qualidade da prestação de serviços públicos.

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