(A reflexão estava prometida já há algum tempo. Não há
propriamente elementos novos de informação que precipitem o cumprimento do
compromisso. Há tão só a maior intensidade da perceção sobre a gravidade do
problema. Muito provavelmente já não será o orçamento de 2019 que permitirá
avançar no início de uma resposta mais consistente. Sendo assim, será tema
central de escrutínio das próximas legislativas.)
Nos últimos tempos, à medida que a consistência
da geringonça começou a apontar para a conclusão da legislatura (ainda
dependente da mais complexa preparação do orçamento de 2019), intensificou-se a
cobertura mediática de falhas e de índices de má qualidade de atendimento de
serviços públicos. A matéria não tem tratamento fácil. A principal razão é a falta
de uma cultura de apresentação de resultados por parte dos serviços públicos. Os
sucessivos governos pensam que essa ausência os favorece. Puro engano. No meio
de tal ausência, multiplicam-se as manifestações impressivas. Uma cobertura
mediática de algo que até pode ser pontual transforma-se rapidamente em perceção
global, por mais insuficiente e truncada que se apresente. É, por vezes,
deprimente o modo reativo como os governos vão atrás de cada notícia por mais
pontual que ela seja. Seria tudo mais simples se houvesse vontade política para
validar um sistema de reporte de resultados, que obrigasse a interpretação jornalística
a confrontar o apelo do pontual com a medida do estado global da arte em matéria
de cobertura e qualidade de atendimento.
O governo do PS com apoio político
parlamentar à esquerda não teria de ser exceção a esta regra e não o é, de
facto. Até pode dizer-se que o é por maioria de razão, pois alguns dos seus
ministros estão mergulhados numa cultura de reatividade que os faz por vezes assumir
interpretações da realidade demasiado otimistas quanto ao estado das coisas.
A primeira interpretação de todo este alarido
em torno da prestação dos serviços públicos não pode deixar de reconhecer alguma
inevitabilidade de efeitos retardados no tempo da consolidação abrupta de
contas públicas que o resgate financeiro de 2011 impôs aos sucessivos
orçamentos de Estado. Por mais progressos que se tivessem observado até ao
resgate em matéria de consolidação do Estado Social e da prestação de serviços
públicos, esses progressos teriam de ser sempre assumidos como algo de fortemente
dependente do modelo económico gerador indireto de receita pública. Por outras
palavras, vulneráveis face a problemas nessa variável. Ora as contas públicas
foram submetidas a um duro golpe. Esse golpe foi, na prática, duplo, Por um
lado, atingiu duramente as remunerações dos seus funcionários e condições de
exercício e progressão nas respetivas carreiras, por maior profissionalismo que
esteja instalado, impactando indiretamente por via de motivações as condições
de funcionamento dos serviços. Por outro lado, porque o resgate impôs também redução
de consumos intermédios (aquisições ao mercado), de investimento público e
congelamento de admissões com convergência de efeitos na qualidade e intensidade
da prestação pública que não podem ser ignorados.
Mas limitar as justificações aos efeitos do
resgate financeiro não é sério. Primeiro, porque em Portugal nenhum governo
conseguiu implantar uma prática multianual de orçamentação de investimento público,
na qual todo o investimento público deveria inscrever as necessidades de
conservação, manutenção e substituição atendendo ao grau prospetivo de utilização.
Recordo-me que, em tempos de ministério das Finanças liderado por Fernando
Teixeira dos Santos, um antigo colega da FEP, o Professor João Loureiro coordenou
um grupo de trabalho para esse efeito. Nunca mais ouvi falar de resultados. Segundo,
porque o atual governo do PS assumiu as suas próprias escolhas no quadro da negociação
com os seus parceiros à esquerda. Essas escolhas privilegiaram reposições de
rendimentos e prestações e não a colocação do investimento público a níveis de
cruzeiro. O que temos neste momento são profissionais públicos a recuperar
rendimentos mas a suar as estopinhas com condições de funcionamento cada vez
mais difíceis de gerir por falta de investimento e limitações de recursos
humanos, estas últimas determinadas entre outras coisas por uma desequilibrada
distribuição de funcionários pelas entidades e pelos territórios.
No meio deste caldinho, todo o bicho-careta pode
dar conta de um mau funcionamento qualquer. Eu próprio, que adquiri viatura
nova em abril, estive cerca de 4 meses para receber o documento único de
circulação (vulgo livrete) enviado pelo IRN) da dita viatura. Imaginar-se-ia
que poderia ter sido atribuível aos correios. Não foi. Por distribuição em função
da intensidade de serviço, o DUC foi parar ao IRN de Almodôvar, esteve para lá
a marinar em função das férias de um funcionário qualquer e perante insistência
telefónica, chegou dois dias depois em correio normal. Desta vez, os CTT não
podem ser acusados de incúria.
Como é óbvio, o atual governo poderia ter optado
por combinações de reposição de rendimentos mais esticadas no tempo e alguma
recuperação de investimento público e não apenas concentrar-se na referida reposição.
Pode dizer-se que o governo PS ficou refém das prioridades dos seus apoiantes
parlamentares. É sempre o velho problema das escolhas públicas. Apoiante da
solução política encontrada, que pode ter valido uma legislatura, nunca escondi
uma limitação nessa solução. PCP e Bloco de Esquerda têm uma dificuldade praticamente
insuperável para se envolverem em negociações de matérias sobre o próprio modelo
económico do país que não estejam direta e imediatamente ligadas a melhoria de rendimentos
ou de condições de vida dos cidadãos. Ora, como sabemos, em muitas dimensões do
desenvolvimento, essa melhoria de condições exige escolhas públicas cuja manifestação
de resultados é diferida no tempo, pois têm prazos de maturação muito longos.
Portugal precisa urgentemente de um quadro prospetivo
de médio-longo prazo sobre prioridades de investimento público, que não
consiste apenas em programas de infraestruturas e aquisição de equipamentos. Deve
também envolver processos de reorganização de serviços e entidades públicas, aproximando
o setor público das necessidades dos cidadãos. Não ignoro que, face à pressão
da redução e estabilização da dívida pública portuguesa, o ministério das Finanças
terá de ter uma palavra determinante nesse processo. Mas o que me parece ser uma
forte limitação é a lógica das escolhas públicas de investimento estar limitada
ao controlo das Finanças. É necessário criar na sociedade portuguesa e na órbita
da decisão ministerial grupos de aconselhamento, com VOZ autorizada, como o já
foi o Conselho Superior de Obras Publicas. A influência desses grupos de
aconselhamento deve olhar também para o estado deplorável das estratégias de investimento
de algumas empresas públicas (com relevo para a CP) e analisar o grau de
cumprimento de expectativas de algumas privatizações, feitas em cima do joelho.
Aos municípios caberá também um papel decisivo.
Esse papel passa pelo seu envolvimento em lógicas de racionalização de
investimento público em espaços supramunicipais, fazendo das CIM o
espaço-institucional-chave para praticar essa nova lógica de racionalização.
E fugir ao tema das escolhas é suicida. Estão
os Portugueses cientes de que para assegurar um SNS de que se orgulhem e seja
capaz de gerir a violenta transição demográfica em que estaremos mergulhados
durante décadas terão de renunciar a obras de fachada, infraestruturas sem utilização
em prazos decentes de tempo, ao desperdício, ao apoio do Estado em matéria em
que podem dar corda aos seus próprios sapatos? Estarão também cientes de que a batalha
pela educação e formação ainda não atingiu um ponto morto?
Como é óbvio, esta lógica mais estruturada e
prospetiva não significa ignorar as premências da reatividade, intervindo onde
os desvios do curto prazo o justifiquem. E sobretudo tornar transparente para a
opinião pública sistemas coerentes de medida da qualidade da prestação de serviços
públicos.
Sem comentários:
Enviar um comentário