sexta-feira, 31 de agosto de 2018

LIBERAIS HETERODOXOS



(O The Economist começou (link aqui) a publicar há cinco semanas uma série preciosa de Philosophy Briefs sobre um conjunto de pensadores liberais que integra nomes como Stuart Mill, Tocqueville, Keynes, Schumpeter, Popper, Hayek e alguns outros. Para além da riqueza interpretativa que as duas páginas de cada registo oferecem, num período de ameaças totalitárias e de diferentes exemplos de liberalismo não democrático como aquele que vivemos, é a altura certa para recordar ideias e velhos debates.)

Os tempos que vivemos não recomendam debates estéreis e inúteis. Numa altura em que a democracia americana se debate contra as excrescências do populismo trumpiano e, na União Europeia, o grupo de Visogrado incentiva descaradamente a Itália de Salvini a juntar forças, é tempo de frentes alargadas contra o avanço das ameaças à democracia, das forças desagregadoras da União e dos sinais autocráticos e totalitários que expectantes ou mais ativos se manifestam. A esquerda, como não pode deixar de ser, não pode ficar indiferente a este contexto. Sem abdicar dos seus valores fundamentais, não pode alhear-se de convergências mais alargadas para a defesa dos valores da liberdade e da democracia. Há vinte, trinta anos não imaginaríamos que este tipo de ameaças regressasse ao espectro das nossas preocupações e temos até dificuldade de acordar para gerir este pesadelo e para o esvaziamento da Voz das elites. Mas é necessário acordar e depressa. Caso contrário, acordaremos à força.

É neste contexto que a iniciativa do The Economist é preciosa. Há ideias que tínhamos arquivado seja pela força inexorável do tempo, seja pelos contrapontos da história e do alinhamento dessas mesmas ideias que são de novo relevantes para repensar os nossos posicionamentos.

No grupo de pensadores liberais que o Economist revisita há compreensivelmente uma enorme diversidade e até algumas surpresas de catalogação. Ninguém duvida que, apesar da sua diversidade, Stuart Mill, Alexis de Tocqueviile, Popper, Hayek, Schumpeter, Isahia Berlin ou Rawls são alimentadores do pensamento liberal, alguns como Schumpeter menos acomodáveis em catalogações. Mas a decisão de considerar Keynes um pensador liberal exige uma explicação aos mais desprevenidos (concordo com a classificação da revista) e estou com curiosidade acerca do registo que vai ser assumido para justificar o último Philosophy Brief que é dedicado, nada mais nada menos, do que a Marx, Rousseau e Nietzche.

Dos materiais já publicados, há três perspetivas que vale a pena destacar.

Primeiro, a importância do pensamento de Tocqueville para compreender os desafios e confrontos que pesam hoje sobre a sociedade americana e para avaliar a sua desejável resiliência face aos desvarios e desagregação de valores em que o Partido Republicano está mergulhado. O meu conhecimento de Tocqueville está longe de ser o que desejaria ter.

Segundo, a importância de Keynes ser considerado como alinhado com o pensamento liberal quando ele combateu arduamente as falácias do “laissez-faire”. É de facto importante não confundir a defesa das virtualidades da intervenção pública quando ela é estruturalmente necessária com a adoção de conceções estatizantes da organização social. Keynes é um intervencionista económico quando o mercado é incapaz de corrigir os problemas estruturais, sem deixar de poder ser um liberal em termos políticos. É isto que uma certa direita portuguesa não entende, fascinada que fica pelas privatizações.

Terceiro, o registo sobre o chamado grupo de Viena (que aliás nunca foi um grupo), constituído por Schumpeter, Popper e Hayek. Estes três pensadores foram profundamente marcados pelo contexto que conduziu ao nazismo e à destruição do ambiente cosmopolita e de excelência de pensamento que se vivia na Viena da época. Por caminhos diferentes, Schumpeter, Popper e Hayek estavam sobretudo preocupados com a aparente indiferença e complacência ocidentais relativamente à possibilidade e avanços do totalitarismo e com os riscos de modelos políticos mais centralizados. Schumpeter concentrou-se no estudo da dinâmica intrínseca de inovação das economias de mercado e do seu processo de destruição criadora, embora anotando que o capitalismo poderia perder essa força dinâmica intrínseca se matasse a liberdade de aparecimento de novos empresários (heróis e inovadores). Popper transformou-se no pai da epistemologia anti-totalitária, focando-se no combate aos fundamentos intelectuais do totalitarismo. Sabemos que The Open Society foi escrita após a invasão da Áustria pelas tropas de Hitler. Hayek evoluiu no sentido de demonstrar os riscos de sistemas de poder económico e político muito concentrado (as diferentes formas de coletivismo). A evolução do trabalho de Hayek nos EUA para onde emigrou (juntamente com Schumpeter, enquanto que Popper foi para a LSE em Londres) tem algo de misterioso, pois nada apontaria para que a sua obra anti-coletivista fosse transformada numa espécie de patrono intelectual do liberalismo económico mais selvagem que nos tempos de Thatcher e Reagan fez o seu caminho.

De certa maneira mal-amados por uma esquerda que foge da autocrítica histórica a sete pés, Schumpeter, Popper e Hayek recuperam forças face ao regresso dos ventos não democráticos. Schumpeter foi totalmente reabilitado pela força que a economia da inovação hoje apresenta como alternativa de pensamento ao mainstream para equacionar a dinâmica do capitalismo. A sua maneira de pensar a inovação abriu caminho ao evolucionismo económico que conserva hoje a sua força e inspira as políticas públicas de apoio à inovação por todo o mundo. Popper e Hayek continuam a ser referências para combater o concentracionismo que, estranhamente, pode hoje resultar dos efeitos do próprio mercado, concentrando o poder económico para além do tolerável. As derivas em torno do acesso aos big data são uma outra força de contração de recursos e de manipulação possível numa lógica mais centralizada. As contradições de pensamento e de envolvimento político de Hayek nos seus últimos tempos de vida nos EUA não podem fazer esquecer o contexto das suas preocupações iniciais, formadas no contexto da Viena invadida e devastada.

Em meu entender, é tempo de reunir forças e ideias para combater os sinais não democráticos e totalitários que grassam hoje pelo mundo. A esquerda não pode abandonar esse debate, ainda que ele implique capacidade de autocrítica. Por isso, a heterodoxia destes pensadores não pode ser deixada no arquivo das ideias, por mais tropelias que a utilização do seu pensamento possa ter suscitado-

Sem comentários:

Enviar um comentário