(O The Economist começou (link aqui) a publicar há cinco semanas uma
série preciosa de Philosophy Briefs sobre um conjunto de pensadores liberais
que integra nomes como Stuart Mill, Tocqueville, Keynes, Schumpeter, Popper,
Hayek e alguns outros. Para além da riqueza interpretativa que as duas páginas de cada registo
oferecem, num período de ameaças totalitárias e de diferentes exemplos de
liberalismo não democrático como aquele que vivemos, é a altura certa para
recordar ideias e velhos debates.)
Os tempos
que vivemos não recomendam debates estéreis e inúteis. Numa altura em que a
democracia americana se debate contra as excrescências do populismo trumpiano
e, na União Europeia, o grupo de Visogrado incentiva descaradamente a Itália de
Salvini a juntar forças, é tempo de frentes alargadas contra o avanço das
ameaças à democracia, das forças desagregadoras da União e dos sinais
autocráticos e totalitários que expectantes ou mais ativos se manifestam. A
esquerda, como não pode deixar de ser, não pode ficar indiferente a este
contexto. Sem abdicar dos seus valores fundamentais, não pode alhear-se de
convergências mais alargadas para a defesa dos valores da liberdade e da
democracia. Há vinte, trinta anos não imaginaríamos que este tipo de ameaças
regressasse ao espectro das nossas preocupações e temos até dificuldade de
acordar para gerir este pesadelo e para o esvaziamento da Voz das elites. Mas é
necessário acordar e depressa. Caso contrário, acordaremos à força.
É neste
contexto que a iniciativa do The Economist é preciosa. Há ideias que tínhamos
arquivado seja pela força inexorável do tempo, seja pelos contrapontos da
história e do alinhamento dessas mesmas ideias que são de novo relevantes para
repensar os nossos posicionamentos.
No grupo de
pensadores liberais que o Economist revisita há compreensivelmente uma enorme
diversidade e até algumas surpresas de catalogação. Ninguém duvida que, apesar
da sua diversidade, Stuart Mill, Alexis de Tocqueviile, Popper, Hayek,
Schumpeter, Isahia Berlin ou Rawls são alimentadores do pensamento liberal,
alguns como Schumpeter menos acomodáveis em catalogações. Mas a decisão de
considerar Keynes um pensador liberal exige uma explicação aos mais
desprevenidos (concordo com a classificação da revista) e estou com curiosidade
acerca do registo que vai ser assumido para justificar o último Philosophy Brief que é dedicado, nada
mais nada menos, do que a Marx, Rousseau e Nietzche.
Dos
materiais já publicados, há três perspetivas que vale a pena destacar.
Primeiro, a
importância do pensamento de Tocqueville para compreender os desafios e
confrontos que pesam hoje sobre a sociedade americana e para avaliar a sua
desejável resiliência face aos desvarios e desagregação de valores em que o
Partido Republicano está mergulhado. O meu conhecimento de Tocqueville está
longe de ser o que desejaria ter.
Segundo, a
importância de Keynes ser considerado como alinhado com o pensamento liberal
quando ele combateu arduamente as falácias do “laissez-faire”. É de facto
importante não confundir a defesa das virtualidades da intervenção pública
quando ela é estruturalmente necessária com a adoção de conceções estatizantes
da organização social. Keynes é um intervencionista económico quando o mercado
é incapaz de corrigir os problemas estruturais, sem deixar de poder ser um
liberal em termos políticos. É isto que uma certa direita portuguesa não
entende, fascinada que fica pelas privatizações.
Terceiro, o
registo sobre o chamado grupo de Viena (que aliás nunca foi um grupo),
constituído por Schumpeter, Popper e Hayek. Estes três pensadores foram
profundamente marcados pelo contexto que conduziu ao nazismo e à destruição do
ambiente cosmopolita e de excelência de pensamento que se vivia na Viena da
época. Por caminhos diferentes, Schumpeter, Popper e Hayek estavam sobretudo
preocupados com a aparente indiferença e complacência ocidentais relativamente
à possibilidade e avanços do totalitarismo e com os riscos de modelos políticos
mais centralizados. Schumpeter concentrou-se no estudo da dinâmica intrínseca
de inovação das economias de mercado e do seu processo de destruição criadora,
embora anotando que o capitalismo poderia perder essa força dinâmica intrínseca
se matasse a liberdade de aparecimento de novos empresários (heróis e
inovadores). Popper transformou-se no pai da epistemologia anti-totalitária,
focando-se no combate aos fundamentos intelectuais do totalitarismo. Sabemos
que The Open Society foi escrita após
a invasão da Áustria pelas tropas de Hitler. Hayek evoluiu no sentido de
demonstrar os riscos de sistemas de poder económico e político muito
concentrado (as diferentes formas de coletivismo). A evolução do trabalho de
Hayek nos EUA para onde emigrou (juntamente com Schumpeter, enquanto que Popper
foi para a LSE em Londres) tem algo de misterioso, pois nada apontaria para que
a sua obra anti-coletivista fosse transformada numa espécie de patrono
intelectual do liberalismo económico mais selvagem que nos tempos de Thatcher e
Reagan fez o seu caminho.
De certa
maneira mal-amados por uma esquerda que foge da autocrítica histórica a sete
pés, Schumpeter, Popper e Hayek recuperam forças face ao regresso dos ventos
não democráticos. Schumpeter foi totalmente reabilitado pela força que a
economia da inovação hoje apresenta como alternativa de pensamento ao mainstream para equacionar a dinâmica do
capitalismo. A sua maneira de pensar a inovação abriu caminho ao evolucionismo
económico que conserva hoje a sua força e inspira as políticas públicas de
apoio à inovação por todo o mundo. Popper e Hayek continuam a ser referências
para combater o concentracionismo que, estranhamente, pode hoje resultar dos
efeitos do próprio mercado, concentrando o poder económico para além do tolerável.
As derivas em torno do acesso aos big
data são uma outra força de contração de recursos e de manipulação possível
numa lógica mais centralizada. As contradições de pensamento e de envolvimento
político de Hayek nos seus últimos tempos de vida nos EUA não podem fazer esquecer
o contexto das suas preocupações iniciais, formadas no contexto da Viena
invadida e devastada.
Em meu
entender, é tempo de reunir forças e ideias para combater os sinais não democráticos
e totalitários que grassam hoje pelo mundo. A esquerda não pode abandonar esse
debate, ainda que ele implique capacidade de autocrítica. Por isso, a
heterodoxia destes pensadores não pode ser deixada no arquivo das ideias, por
mais tropelias que a utilização do seu pensamento possa ter suscitado-
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