terça-feira, 2 de julho de 2024

MEIO PÃO E UM LIVRO

 


(Conta-se que Federico García Lorca, na inauguração da biblioteca de Fuente Vaqueros, em setembro de 1931, terá dito algo como isto: “Não só de pão vive o homem. Eu, se tivesse fome e estivesse abandonado na rua, não pediria um pão, pediria antes meio pão e um livro”. Aliás, recomendo vivamente a leitura desse texto de Lorca, que podemos encontrar nos arquivos da Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, pois ele é um verdadeiro hino à cultura e à leitura que deveria ser de leitura obrigatória nas nossas escolas. Mas perguntam-me vocês como é que vim aqui parar? O mote para esta reflexão é a sugestiva entrevista ao El Español da escritora saragoçana Isabel Vallejo, autora do autêntico relâmpago editorial que foi praticamente em todo o mundo, incluindo Portugal, O INFINITO NUM JUNCO, ao qual dediquei um post em 6 de janeiro de 2021. Nesse post de 2021, escrevia: “O Infinito num Junco é também uma forma de conversar com os livros, neste caso, com o Livro na sua metamorfose até chegar à produção de hoje, onde temos o problema inverso do da Antiguidade, edita-se muito e em escala, mas é também em massa que se enchem depósitos de edições não totalmente vendidas”. Há milagres editoriais cuja complexidade de explicação transcende o meu modesto pensamento e bagagem de literato. Quem imaginaria, por exemplo, que o livro de Piketty O CAPITAL NO SÉCULO XXI constituísse o êxito editorial alcançado pelo economista e investigador francês, que deve ter ficado deliciado com tal repercussão? O livro de Isabel Vallejo que se lê de um fôlego trazendo para o leitor a importância do livro na antiguidade é surpreendente no seu propósito de reabilitar o livro e a leitura na sociedade digital. O êxito alcançado torna paradoxalmente muito difícil o futuro da escritora como profissional, pois deve ser praticamente impossível atingir o alcance do Infinito num Junco, arriscando a autora a limitar-se a viajar pelo mundo para animar sessões no vasto mercado de traduções que o livro suscitou. A entrevista de Vallejo é singelamente um testemunho pessoal de uma grande sinceridade e completa a meu ver muito bem a leitura do livro. Depois de ler a entrevista, fiquei com vontade de o reler e se algum dos nossos leitores ainda não o leu faça-o com esta entrevista ao lado que vale a pena.)

Um milhão e meio de exemplares vendidos em várias configurações materiais possíveis, incluindo os áudio livros, e tradução em 43 idiomas é obra e explica em parte as mudanças de vida em alguém que duvidava se algum dia seria escritora a tempo inteiro.

O que espanta no Infinito num Junco é a sua capacidade para nos devolver o interesse pelas humanidades, num mundo que parecia tê-las enclausurado num universo limitado de especialistas. Gostei bastante que Isabel Vallejo faça eco na sua entrevista do pensamento de uma filósofa que me é bastante cara, Martha Nussbaum, à qual se deve o pensamento superior de que a arte faz de nós pessoas melhores porque nos ajuda a compreender quem pensa diferente e como é importante compreender quem pensa diferente de nós. Está em causa a cidadania democrática.

Se o mercado reagiu espantosamente a um livro como este isso talvez possa significar que a comunidade de interesses em torno das origens mais profundas do livro e das humanidades em geral é mais vasta do que pensávamos e que pode ser despertada a qualquer momento. Vallejo cita na entrevista um tweet de uma leitora que descreve bem a importância da literatura: “Para mim as Humanidades não me dão de comer, mas dão-me a vida”.

Nesta entrevista que revisita o êxito do livro encontramos ideias seguras para uma educação e formação mais ampla da pessoa humana, garantindo que a composição dos curricula permita sempre alguma flexibilidade para que uma pequena dimensão de humanidades e de educação artística seja garantida.

Irrecusável. Vou reler o INFINITO NUM JUNCO.

 

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