(Uma das grandes perturbações políticas do nosso tempo traduz-se na dificuldade de entender que os diferentes exemplos do populismo plutocrático instalado não surgiram do nada, mas antes de eleições que lhes abriram o caminho do poder ou que aumentaram a sua margem de manobra política mesmo que não assumiram o poder. Apesar da sua derrota, os resultados eleitorais obtidos por Trump reiteram a necessidade de melhor compreender o fenómeno para o combater melhor.)
A democracia, como o sabemos embora tendamos a ignorá-lo, permite na sua lógica que forças interessadas na sua destruição ou adulteração possam obter respaldo eleitoral para os seus propósitos iliberais, não democráticos e até autoritários. Em escalas muito diferentes, Trump e o Chega materializam essa possibilidade.Com Trump, temos o absurdo aberto nos EUA com 70 milhões de eleitores a apoiar alguém que em termos públicos realizou a mais perversa afronta da democracia quando duvidou da legitimidade do voto que lhe proporcionou tal massa crítica de eleitores. Com o Chega, a dimensão do voto nos Açores e no continente permitiu-lhe influenciar o curso da vida política nos Açores e fazer com que o simplório Rio ultrapassasse uma linha vermelha que muito poucos na Europa ousaram passar, o de negociar a viabilização parlamentar de uma aliança de direita, em si legítima, mas dependente do posicionamento de um partido que visa subverter o jogo democrático.
Podemos dizer que, em casos extremos como a Polónia ou a Hungria, a ascensão do populismo plutocrático beneficiou de práticas de poder não próprias de uma sociedade democrática, minando a equidade e transparência do jogo eleitoral. Mas com Trump o modo como ele deixa transparecer ao que vem, sem subterfúgios ou manobras de encobrimento, mas apenas mentindo, o significado do apoio popular alcançado aponta para a sedução de uma parte considerável do eleitorado americano.
Continuamos à procura de uma explicação mais global e consistente para essa sedução exercida. Algumas categorias explicativas têm emergido, mas muitas delas demasiado centradas em categorias exclusivas que não resistem depois à diversidade de situações de sedução e de seduzidos que vão proporcionando a emergência do iliberalismo democrático e do autoritarismo.
Jan-Werner Müller (O que é o Populismo? – Texto Editora, 2017) é uma daquelas vozes que vale a pena ouvir regularmente para ir construindo uma perspetiva mais global e coerente da sedução exercida pelo populismo plutocrático e pelas diferentes modalidades que ele reveste junto de certos tipos de eleitorado. De um artigo bem recente escrito para o Financial Times, destaco o seguinte excerto:
“(…) Sabemos que tais líderes são antipluralistas porque o afirmam nos seus discursos. O erro está em inferir que toda a gente que neles vota é também antipluralista ou mesmo que presta atenção ao que no fim de contas é apenas um elemento de um pacote político mais vasto. Não é um mistério que mesmo os membros das minorias atacadas pela retórica populista podem por vezes votar nos populistas – como aparentemente eterá acontecido com Afro-americanos e Latinos que votaram em Trump. Se quem os cientistas políticos chamam delicadamente de “votantes mal informados” podem convencer-se que o Sr. Trump é um génio dos negócios que fará reanimar a economia após a pandemia ou que Joe Biden é alguém demasiado brando para Cuba, isso não quer dizer que necessariamente importe o que o Sr. Trump disse há alguns anos sobre os supremacistas brancos em Charlottesville.
Os populistas são extremamente espertos na polarização das sociedades, de tal modo que um número significativo de cidadãos sente que todas as eleições são um confronto apocalíptico entre nós e eles. Isso não é suficiente para conceder maiorias aos populistas de direita. Mas a sua causa é fortemente impulsionada quando atraem o apoio das elites financeiras e económicas mais tradicionais que pretendem deixar passar o autoritarismo em troca de desregulação e impostos mais baixos. No fim de contas, nem na Europa ocidental nem nos EUA os populistas de direita chegam ao poder sem a colaboração das elites conservadoras mais instaladas.
O Sr. Trump não é a causa mas antes o sintoma de uma tendência mais vasta no Partido Republicano para adotar o “populismo plutocrático”. Este consiste em políticas que beneficiam essencialmente o 1% mais rico da população, em combinação com as implacáveis guerras culturais que distraem das ideias económicas que os Americanos não acham particularmente atrativas. É de facto verdadeiramente perturbador que muitos votantes estejam dispostos a negligenciar o comportamento autoritário porque dão prioridade aos seus compromissos partidários ou interesses económicos, passando por cima da democracia.”
Palavras lúcidas que talvez o simplório Rio devesse ter em conta para compreender o significado do seu erro político de ultrapassar a tal linha vermelha de que muitos falam. Sabemos que o vermelho é coisa que afugenta Rio, mesmo que a linha seja grossa, por isso pisá-la não tem para ele significado aparente que o preocupe. Mas talvez valesse a pena que ponderasse as palavras de Müller quando ele diz que o populismo de direita sempre precisou de ajudas poderosas para chegar ao poder. Rio não é elite que se entenda como tal. Mas o seu estatuto de manga de alpaca da política fá-lo perder facetas importantes da realidade política. Não está em causa a alternância democrática nos Açores, pois isso faz parte do próprio jogo democrático. O problema está em que essa alternância governe com o apoio parlamentar de uma força que a política em Portugal deveria consagrar como indesejável.
Sem comentários:
Enviar um comentário