(Os tempos são terríveis para se ajuizar o que vale a pena e o que não vale a pena ler e estudar em matéria de contributos para uma abordagem eficaz à crise pandémica e sobretudo para orientar o nosso próprio comportamento individual e familiar de proteção. Não está em causa o dever de ouvir com atenção especialistas credíveis, mas parece que começa cada vez mais a ser evidente que uma pandemia exige uma abordagem multidisciplinar e sabemos como a convivência entre várias disciplinas não se decreta, vive-se, pratica-se e, naturalmente, os que estão mais atrasados padecerão de ter permanecido em gavetas ou feudos disciplinares ...)
Tenho insistido neste blogue para a absoluta necessidade de evitar toda a cacofonia em matéria de interpretações e explicações dos surtos pandémicos. Entre os extremos do mais abjeto negacionismo e da hipersensibilidade aos desencontros entre perspetivas científicas, por um lado, e entrarmos em desvario e desorientação com tanta variedade de interpretações, por outro, há posições de compromisso e de bom senso ao nosso alcance. E nestas coisas não desprezo a intuição (que tem sempre os seus riscos) para detetar no espaço público de opinião aquilo que traz mais ruído do que valor acrescentado a uma interpretação coletiva que facilite a nossa proteção, individual e dos que mais amamos. Estou satisfeito a este nível pois reconheço que tenho tido alguma sorte na minha intuição de deteção dos ruidosos cacofónicos. Reconhecer a existência de gente de bom senso é importante nesta matéria, pois muita informação passa pela gente que conhecemos. Digamos que o meu radar intuitivo que me anuncia coisas do tipo “não percas tempo com esse tipo de ruído” tem se portado bem e não sei sinceramente se isso é apenas uma matéria de sorte ou também de cultivar a intuição e prudência combinada com a nossa racionalidade e capacidade de se manter atento e informado.
Foi, assim, por exemplo com a intuição (sugerida por contributos científicos do tipo WHAT IF e depois confirmada) que tive que percebi que a disseminação por aerossóis estava a ser negligenciada pelas autoridades sanitárias mundiais e europeias. Quando, por exemplo, em caminhadas de desentorpecimento e procura de algum movimento para contrariar esta posição na mesa de trabalho em que escrevo, aqui ou em Seixas, me cruzava com “bravos atletas” em corrida e sem máscara, a minha reação era espontânea e imediata. Afastava-me e procurava o mais possível abandonar o possível espaço de suspensão no ar dos aerossóis libertados pelo esforço físico de quem passava. Foi também essa mesma intuição que me levou a riscar os interiores de restaurantes das minhas saídas de lazer.
Os contributos do Professor José Luís Jiménez da Universidade de Boulter no Colorado que o El País e o New York Times começaram insistentemente a divulgar foram dando peso e densidade ao fundamento da espontaneidade da minha reação. E estou hoje cada vez mais convicto de que uma aplicação mais pioneira deste princípio do WHAT IF teria conduzido muito mais cedo a uma utilização mais vinculativa das máscaras e a menores níveis de infeção e contágio. Ainda hoje o Expresso on line (link aqui) nos traz um exclusivo, mobilizando o conhecimento do imunologista Luís Delgado da Faculdade de Medicina do Porto, que confirma esta tendência. São os aerossóis que explicam a maior intensidade de contágios e daí que os temas da ventilação assumam, obviamente, uma nova importância na preparação dos ambientes de proteção. E claro a exigência que o exercício possa ser feito com utilização de máscara.
Mas como distinguir a crítica cacofónica da crítica não cacofónica?
Um dos critérios possíveis é o da credibilidade de quem a emite. Não é seguramente um critério isento de riscos. Quantas vezes fomos surpreendidos pela nossa escala valorativa de credibilidades que nos desfeiteou e entristeceu (até tu Brutus!). Mas vale a pena assumir o risco. Claro que favorece os incumbentes e penaliza as novas gerações, mas há muitas destas últimas que já resistem ao crivo dos valores da credibilidade.
Há dias um grande Amigo da minha geração e das lides desportivas (o Dr. Raul Maia) alertou-me através do Messenger (que uso pouco, diga-se) para uma conferência no You Tube realizada na Convenção Nacional da Saúde (link aqui). O conferencista apresentava-se como António Ferreira. Apliquei o critério e associei imediatamente o nome ao Professor Doutorado e Internista da Faculdade de Medicina do Porto e ex-Administrador do Hospital S. João. Logo, valia a pena gastar os 28 minutos da visualização. E o critério complementar também se aplicava: seguramente que o Raul Maia não me puxaria para a cacofonia.
Confesso que perdi mais tempo dos que os 28 minutos para digerir o impacto. A comunicação do Professor António Ferreira é passível de ser considerada, aligeiradamente e com preguiça intelectual, fonte de cacofonia, mas a sua credibilidade como personalidade leva-me a colocá-la entre aquelas críticas que vale a pena discutir. Não é por acaso que, como conflito de interesses inicialmente declarado, o conferencista afasta qualquer possível identificação com o negacionismo e afirma-se cumpridor rigoroso das orientações profiláticas gerais como a distância física, a higienização permanente das mãos, o uso de máscaras. O que é um bom princípio!
Que aspetos mais relevantes podem ser discutidos e que podem merecer uma reflexão mais crítica?
A intervenção processa-se em vários níveis, alguns deles a meu ver mais discutíveis. Apresentemos os principais argumentos, que se percebe serem partilhados por um conjunto de cientistas e técnicos de saúde, não identificados, mas que se presume constituírem um coletivo:
- Oposição frontal ao instrumento do confinamento rigoroso, com essencialmente dois argumentos: a não existência de diferenças consideráveis em termos de casos confirmados e de mortes entre países com estratégias diferenciadas de atitudes relativas ao confinamento e a devastação económica e social que eles determinam;
- A defesa de uma logística de intervenção que tenha em conta os diferentes períodos de contacto do indivíduo com o vírus, do contacto não sintomático até aos casos mais graves de internamento, passando pela revelação sintomática da doença;
- A defesa da utilização dos testes rápidos como forma de despistagem on time e consequente facilitação da logística de intervenção atempada segundo os períodos atrás assinalados;
- A invocação de perspetivas de resultados positivos na utilização de fármacos no tratamento da doença (hidroxicloroquina e ivermectina, um desparasitador, nas fases menos agudas e dexametasona nas fases mais agudas), com invocação do caso da Índia para justificar esses êxitos;
- Uma posição frontal de crítica a falsos poderes, feudos, capelinhas que estão a dominar as autoridades de saúde, que é a parte menos fundamentada e mais alarmista da comunicação e que sugere que a personalidade não está de boas relações com o sistema.
Como é possível confirmar, o material é vasto e diversificado.
Os argumentos sobre a possibilidade de evitar os confinamentos rigorosos não me convenceram. Alguns gráficos evolutivos do número de casos e de mortes são apresentados procurando mostrar que diferentes regimes conduzem a resultados não muito diversos mas não me parecem suficientemente explicativos. Porquê então a convergência generalizada nesta segunda onda em torno de regimes mais rigorosos. Quanto à devastação económica e social, acho que o Professor António Ferreira não integra bem o facto de uma pandemia gerar uma crise recessiva sincrónica por todo o mundo (todos estão em crise). Por isso, custa admitir qual a vantagem de regimes de confinamento inexistentes para economias de pequena dimensão como Portugal e fortemente abertos ao exterior.
(Slide apresentado pelo Professor António Ferreira na sua conferência)
A segunda série de argumentos tem outro valor intrínseco. A defesa de uma logística de intervenção considerando as diferentes fases de revelação do contágio e da doença parece-me de grande alcance. E aí houve e há falhas das grossas.
O terceiro tipo de argumentos em torno da utilização necessária dos testes rápidos
vai ao encontro de uma das minhas grandes perplexidades. Não entendo a razão
porque a ciência ainda não chegou a uma perspetiva definitiva sobre estes
testes e sob seu alcance aparentemente de grande amplitude. Não sou tão perentório
como o conferencista, mas acho que é um grande mistério. Todos os dias os jornais nos trazem dúvidas e mais dúvidas de países sobre esta modalidade.
O quarto tipo de argumentação é poderoso e imagino que esteja baseado em forte evidência. É talvez o mais surpreendente e causa-me alguma perplexidade por não haver ainda protocolos suficientemente generalizados. Embora admita que os hospitais estejam a praticá-los sem grandes alardes e publicidade.
A última parte da comunicação é-me estranha e não a classifico. É do foro dos profissionais e das autoridades. É um assunto de muito melindre e onde pode haver muito posicionamento individual. É demasiado nebulosa para meu gosto. É propenso a perspetivas revanchistas e cabalísticas. Não é a minha praia, ponto.
Determinado como sempre foi, o Professor António Ferreira anima uma petição pública que está disponível e que pode ser localizada através do you tube da conferência. Não ficaria de bem comigo próprio se não divulgasse os seus argumentos, embora alguns deles me inspirem dúvidas.
Mas intuo que não é cacofonia. Posso estar obviamente enganado.
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