(A cena final depois do abraço furtivo) (Elena Irureta e Ane Gabarain)
(O PATRIA na HBO acabou, deixando um vazio no streaming que vou levar tempo a preencher. E acabou com um abraço que é toda uma metáfora sobre a questão basca, quando ela é vista de dentro, a partir dos sentimentos de dor de quem perdeu próximos e de quem matou. Condensar em oito episódios de pouco menos de uma hora a fabulosa obra de Aramburu é um feito de que a televisão se pode orgulhar, apesar do vazio que nos deixa.)
Já compreenderam que a obra de Fernando Aramburu foi das melhores coisas que me aconteceram nos últimos tempos em termos culturais. Resolvi lê-la em castelhano para melhor mergulhar naquele ambiente e até tomei contacto com algumas peças sobre a história basca para que não me escapassem pormenores. O olhar de Fernando Aramburu não agradou obviamente nem aos apaniguados próximos da ETA nem às famílias das vítimas de tão desgraçado e inglório período de terrorismo nacionalista. Tomar o partido e assumir o olhar de um dos lados do conflito seria sempre mais fácil do que procurar o equilíbrio de trabalhar os diferentes sofrimentos que ali se cruzaram durante anos, a ponto de transformar a convivialidade dos pequenos lugares e das tabernas bascas em atmosferas irrespiráveis, de ódio e exasperação, de discriminações inauditas, de medo, cobardia e violência. Não sei se o estar fora (na Alemanha) de alguém de dentro, como Fernando Aramburu, terá ajudado nesse equilíbrio da narrativa, mas pela minha parte acho que não conseguirei ler mais nada sobre a história do conflito basco e sobre a emergência da ETA (e tenho algumas coisas para ler na estante, expectantes, sem me situar no romance de Aramburu.
Quando finalmente me decidi a colocar a HBO na Smart TV já tinha lido imensa coisa sobre a série de Aitor Gabilondo, incluindo a controvérsia inicial sobre os cartazes de apresentação da série e, por isso, o risco de expectativas quebradas ou diminuídas era elevado. Mas episódio a episódio fui-me apercebendo que Aramburu deveria por certo estar feliz com a adaptação televisiva, ainda que ela constitua um produto artístico autónomo. E nestes tempos de confinamento e de alteração dos nossos quotidianos, a relação com a televisão é claramente distinta.
A não linearidade narrativa dos diferentes episódios é notável, num vai e vem no tempo de recordação de Bittori, a espantosa revelação de uma grande Senhora, Elena Irureta, artista basca e guipuscoana, que assume o papel da viúva do pequeno-médio empresário de transportes, Txato, seu nome familiar. Vamos percebendo que uma outra força da natureza, Miren, protagonizada por Ana Gabarain, nacionalista, mãe de Joxe Mari, etarra e até ao último episódio presumível autor físico dos tiros que à queima roupa assinaram Txato (no fim coautor do atentado mas não dos disparos) vai emergindo e que aquelas duas mulheres vão ocupando o lugar central da narrativa.
A partir do desenlace inicial, da passagem do tempo que inclui o abandono da luta armada pela ETA e da perceção da morte que Bittori vai sentindo com o seu cancro cervical, tudo se resume à procura que esta última, num assomo de dignidade que a imagem de Elena Irureta no écran proporciona, realiza para saber a verdade (quem afinal matou Txato e obter de Joxé Mari um simples pedido de desculpa). A passagem do tempo vai proporcionando o lento reatar dos contactos entre as duas famílias. Bittori fala com Joxian, pai de Joxé Mari, na sua horta e este visita o túmulo de Txato. Javier médico e filho de Bittori visita no hospital Arantxa filha de Miren vítima de um acidente vascular que a colocou numa cadeira de rodas. Nerea, filha de Bittori reencontra a sua antiga amiga de Pueblo Arantxa e esta última aproxima-se de Bittori, passando a ser uma espécie de intermediária à distância entre Bittori e Joxé Mari.
O episódio 8, que culmina a série, é talvez o mais metafórico. A carta de Joxé Mari chega finalmente e com ela o pedido de desculpas e com ela a revelação de que ele não conseguiu disparar.
Depois de uma arrepiante logística de Bittori de preparação para a morte, transmitida à sua filha Nerea, lê a carta em frente ao túmulo de Txato, regressa ao Pueblo, encontra-se na praça com Arantxa e toma conhecimento do início da sua recuperação. No seu percurso, cruza-se com Miren, abraçam-se furtivamente e emerge poderosa a metáfora de toda a série. No frio húmido do granito da rua em frente a casa em que Txato foi assassinado fica para sempre registada uma impossibilidade, a de aquelas duas famílias poderem reatar a sua familiaridade e proximidade. A convivência cívica vai ser possível, como o mostra o ambiente daquela pracinha do Pueblo, se excetuarmos alguns fanáticos que permanecerão algemados ao ódio, mas apenas isso. Bittori e Miren nunca mais poderão ser as amigas íntimas que eram tomando o seu chocolate nas belas cafetarias de San Sebastián. Não porque a morte devolverá Bittori à companhia de Txato. Mas porque o sangue que penetrou aquela rua nunca mais poderá ser esquecido por todos aqueles protagonistas. E aquele abraço furtivo entre Bittori e Miren é talvez a metáfora mais poderosa para descrever o futuro do País Basco.
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