terça-feira, 3 de novembro de 2020

O RITUAL DA PASSAGEM DO TEMPO

 


(A intensidade do teletrabalho tem-me conduzido a horas a fio à secretária, com à minha esquerda a longa estante com os livros de estimação, as fotografias dos netos, dos Pais já falecidos e alguns artefactos afetivos, na frente a secretária da minha mulher, à direita alguns quadros e a paisagem urbana e atrás de mim discos, livros e o olhar dos nada metediços vizinhos. Na paisagem urbana sobressaem dois liquidâmbares, que estão gigantescos, que são para mim, com as suas folhas caducas, uma bela identificação do ritual da passagem do tempo …)

É seguramente um outono diferente aquele em que estamos mergulhados, de novo às voltas com a dificuldade de, nos mesmos espaços, combinar trabalho e descanso, foco e dispersão voluntária, acomodar milhentas reuniões com os ruídos da casa, do jardineiro ao lado que decide colocar a máquina em funcionamento não silencioso justamente naquele momento e das gaivotas que teimam em passar pela varanda para dizer que, apesar todos os picos e armadilhas no telhado, continuam por cá.

Bicho de escritório, nunca pensei passar tanto tempo no seu conforto, concentrado no muito trabalho que tem surgido em tempos de pandemia. A mudança de cor dos liquidâmbares enquanto o tempo inexorável as vai fazendo cair é o ritual que me vai acompanhando e como é bonito aquele castanho avermelhado das folhas antes de se precipitarem no solo.

O ritual da certeza da sequência temporal, sim há dimensões que vão resistindo às mudanças climáticas, coexiste paradoxalmente com a incerteza e a indeterminação como paradigmas do futuro próximo. Refém das minhas polinomiais, e dos números da pandemia que trazem nos últimos dias a coabitação paradoxal de menos casos, números ainda elevados e aumento das mortes, vou percebendo que isso do “trade-off” economia-saúde é uma treta como iremos constatar nos próximos dias. Vamos ter consciência disso à medida que o controlo da pandemia em regime de confinamento não forçado nos vai conduzir a controlos cada vez mais apertados em domínios diversos de atividade que acabarão obviamente por se refletir negativamente no ritmo da atividade que tanto quisemos preservar.

Incerteza e indeterminação também ao nível das eleições mais acompanhadas do mundo e de sempre, com receio de que uma noite prolongada me conduza à maior deceção no universo das minhas deceções. Prefiro por isso não sacrificar a normalidade do sono e aguardar que de chofre na manhã de amanhã traga uma esperança ou a deceção. Receio também que a União Europeia não aprenda com a situação e que continue suspensa do que a América decidir em vez de arrepiar caminho e se convencer de vez que a sua defesa é crucial.

Interrogações ainda ao nível da governabilidade, neste caso com a certeza anunciada de que a polarização política também acabará por tocar o espectro político nacional, como se houvesse razões ponderosas para ficar à porta. Os Açores podem transformar-se como já aqui referi num laboratório avançado dos efeitos dessa polarização.

Não entendo como incompatíveis a justeza da solução Geringonça à esquerda no período pós ajustamento Troika e a necessidade de não introduzir rigidez na gestão da polarização que veio para ficar. Não havia razões objetivas para António Costa e o PS (será que terá havido tanto alinhamento como isso nessa posição?) quebrarem a possibilidade de acordos e articulações com o PSD, sobretudo num contexto em que o PCP e o Bloco de Esquerda já terem enunciado que a reedição da Geringonça teria mais obstáculos. Os acordos políticos e os pactos de governação fazem-se em função das condições concretas do país e não apenas em termos ideológicos, princípio tanto mais aplicável quanto mais estivermos a falar de partidos que não queiram voluntariamente afastar-se das questões da governação. Por isso, parece-me que a decisão de António Costa de afastar liminarmente qualquer possibilidade de acordos com o PSD, dramatizando sabe-se lá para quê (para impressionar os parceiros à esquerda? Oh santa ingenuidade!), pode colocar futuramente em causa o papel de charneira do PS.

Fui dos primeiros a saudar a queda de um “impossível” da política portuguesa que consistiu anos e anos em partir do princípio de que acordos de governação à esquerda não eram possíveis. Acho ainda que a pacificação do pós-Troika só podia ser assegurada à esquerda como o foi. Mas a manutenção de condições de governabilidade exige que toda a rigidez seja combatida e, insisto, a justeza dos acordos políticos não se avalia em abstrato, mas antes em função do momento concreto em que os países se encontrem. O PS não tem de abandonar as suas ideias fundamentais para garantir que acordos à esquerda e com o centro-direita democrático sejam possíveis em tempos e em circunstâncias concretas diferentes. O que me parece essencial é manter a característica de charneira política.

Poderá emergir nos Açores uma solução de governo regional com acordo político à direita? Face aos resultados, claro que pode, cabendo ao PSD avaliar dos lios futuros em que se pode meter com acordos políticos com o Chega. Pode essa possibilidade migrar, com ou sem subsídios de viagem, para o continente? As sondagens dizem que sim. É tempo da esquerda não cair no mesmo erro da direita em Portugal ter sido surpreendida pela queda do “impossível político” atrás referido. Claro que a polarização política pode mudar as coisas e a possibilidade da direita governar com acordo parlamentar à direita é real. E até temos a vantagem de perceber a posteriori os problemas que teve o PP em Espanha com a desvalorização do papel da extrema-direita.

Indeterminações e incertezas que bastam. Por algum tempo, entretanto, gozarei a beleza dos liquidâmbares e das suas folhas castanho avermelhadas antes da sua queda inexorável.

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