(As reuniões do INFARMED voltaram e ainda bem. Mas, sem prejuízo do reconhecimento da sua relevância, ainda estamos a anos-luz de uma correta informação de suporte a uma sensata decisão política. A reunião de ontem ilustra-o de modo perfeito, como o tentarei explicar neste post.)
A realização em ambiente de acesso livre das reuniões de publicitação de resultados de investigação científica com influência na gestão pandémica constitui uma boa decisão. Mas se pedimos aos políticos sensatez nas suas decisões, a comunicação dos “cientistas” não o deve ser menos. A iliteracia científica em Portugal é elevadíssima sobretudo em termos de interpretação de resultados e, com raríssimas exceções, os jornalistas foram infelizmente treinados para o contrário do rigor e são frequentemente agitadores potenciais por incúria, desleixo e preguiça intelectual, muita preguiça, alguns deles já cativados pela sereia tentadora das redes sociais. Nunca aceitei o encolher de ombros perante a contradição fundamental dos media, pedir para explicar em cada vez menos tempo questões cada vez mais complexas e imbricadas. Como o é uma pandemia, que não deve ser terreno exclusivo de epidemiologistas ou virologistas, por mais importante que o seu testemunho e trabalho se apresentem.
A reunião de ontem no Infarmed trouxe elementos contraditórios, até certo ponto estava a potenciar uma mensagem adequada a dar aos portugueses, mas depois houve informação disponibilizada que abriu caminho a uma indecorosa cacofonia, na qual até o Presidente Marcelo se espalhou e à grande.
Uma das surpresas desagradáveis da reunião (e é a expressão mais meiga que encontrei para não fazer parte da tal cacofonia errática e perigosa) foi a evidência transmitida de que há uma quantidade elevadíssima de contágios dos quais não se consegue saber o fator determinante. Não ouvi essa parte da reunião e estou perplexo pois já ouvi ao longo dia os números mais díspares sobre essa percentagem, 40%, 60% e até 81%. O que nos deixa (a quem pugna por uma informação rigorosa) perplexos e receosos sobre a credibilidade do que nos é transmitido. Para além de tal evidência me deixar bastante inseguro sobre a qualidade do rastreio que está ser realizado para determinação de fontes de contágio, aquela percentagem de desconhecimento sobre as fontes (desconhecimento no sentido de não ser possível atribuir-lhe uma origem determinante) torna objetivamente ridícula a informação veiculada há tempos pela DGS de que são os ambientes familiares o principal fator responsável pela disseminação viral. Embirro solenemente com a falta de rigor e neste caso as repercussões são avassaladoras. Como é possível falar de ambientes familiares como foco quando a evidência veiculada através da própria DGS ou por quem para ela trabalha nos diz que a maioria dos contágios registados não tem uma origem clara? É de causar calafrios na espinha…
A reunião teve aspetos muito positivos para a mensagem a transmitir com o novo Estado de Emergência há pouco comunicada por Marcelo. O testemunho, por exemplo, de Manuel Carmo Gomes alertando para a tragédia de um patamar na curva de infetados em torno dos 6.000 a 7.000 infetados é uma mensagem poderosa e tem fundamento nos seus próprios cálculos. Uma boa onda. Na mesma linha, existiram outros testemunhos que deram conta de experiências recentes de contenção em torno de confinamentos redutores da mobilidade de pessoas, o que é rigoroso e verdadeiro, particularmente para esta segunda vaga.
Mas eis que senão aparece uma comunicação do Professor Henrique Barros, a quem associo uma palavra credível e rigorosa, na sua reconhecida luta por uma visão mais interdisciplinar da saúde pública e obviamente da gestão pandémica. A apresentação de Henrique Barros disse respeito a um estudo ainda não concluído (o que me parece ser desde logo uma má prática a evitar nos tempos de tensão que vivemos) sobre a situação específica de estudantes universitários, creio que para uma amostra de cerca de 700 estudantes.
A cacofonia interpretativa que a comunicação gerou teve essencialmente dois elementos de esplendor mais ou menos explosivo.
O primeiro elemento resultou de uma afirmação do palestrante segundo a qual as aulas presenciais não apresentavam sinal significativo de terem contribuído para os contágios estudados dos estudantes representados na amostra. A esta informação aparentemente anódina, juntou-se a partir de fora a interpretação de que o ensino presencial estava justificado e que o ministro da Ciência e Ensino Superior estava validado na sua decisão. Como diria o Diácono Remédios, Ó meus amigos … Toda a gente com um mínimo de bom senso sabe que a questão não são as aulas presenciais em si entendidas. A questão crucial é a matéria da mobilidade e da convivialidade que a realização de aulas presenciais nestes dias determina em contextos espaciais bem mais vastos do que a sala de aula, num grupo etário particularmente sensível à interação. A variável ensino presencial é bem mais vasta que a questão das aulas presenciais. Com salas minimamente organizadas e adaptadas às novas regras de distanciamento, as aulas presenciais não são problema. Mas o que o ensino presencial potencia em termos de mobilidade quando a questão essencial é reduzi-la é incontornável. O ministro Manuel Heitor poderá a fazer as suas corridas introspetivas, afinal validado por uma falácia de demonstração.
Mas as coisas não ficaram por aqui e certamente que a posteriori o Professor Henrique Barros reconhecerá a perigosidade da interpretação. No mesmo estudo, repito, exclusivamente ficado em estudantes universitários, conclui-se pelos vistos que os restaurantes respondem apenas por 2% dos casos de contágio. Um verdadeiro cocktail Molotov ou coisa mais potente. Estamos a falar de estudantes, apenas, num estudo aparentemente ainda não concluído. Mas rapidamente à saída da sessão se associou o resultado apresentado com uma devastadora perseguição à restauração, penalizadíssima com os horários do recolher obrigatório, acentuando a penalização que sobre eles recai com a própria pandemia. O rastilho político chegou aos deputados e o “brilhante” Cotrim que para mal dos meus pecados também se chama Figueiredo puxou dos seus galões liberais para invocar o estudo. Conviria não esquecer que estudos de outros países, com bases de representatividade incomparavelmente superiores, como por exemplo o que citei no meu antepenúltimo post, colocam os restaurantes no topo dos contágios.
Afinal há um princípio muito simples que se aplica quando a informação e a investigação é escassa. Esse princípio é o da prudência, em função dos ambientes mais propícios à disseminação viral. Esta parte da reunião do INFARMED viola frontalmente esse princípio e presta um mau serviço à decisão política, que, espero eu, seja mais prudente.
Nota final:
Após imensos esforços, não consegui obter qualquer informação de que o estudo esteja acessível. A cacofonia afirma-se e recomenda-se, ao contrário do que seria exigido.
Sem comentários:
Enviar um comentário