quarta-feira, 18 de novembro de 2020

FACTOS PANDÉMICOS INTRIGANTES

 


(A investigação sobre o COVID-19 continua a ser publicada a um ritmo deveras impressionante, mas com níveis de dispersão e de diversidade que torna muito difícil o estabelecimento de regularidades com potencial de extensão nas estratégias de abordagem à pandemia. Nesta amálgama de produção publicada torna-se também praticamente impossível distinguir entre a investigação que percorreu a sua tramitação normal e protocolada e a que foi arriscadamente apressada para marcar argumentos em tempo útil.)

A publicação on line de artigos aceites e objeto de avaliação entre pares acelera um pouco o acesso a tais resultados e a prova disso é a marca de água que cruza este artigo da NATURE[1] que serve de inspiração ao post de hoje, na qual pode ler-se “ACCELERATED ARTICLE PREVIEW” (link aqui). Está tudo dito, não?

A utilização de dados provenientes dos telemóveis e dos padrões de mobilidade que esses dados permitem medir para uma massa imensa de pessoas (cerca de 100 milhões de pessoas seguidas nas 10 cidades mais populosas dos EUA) traz possibilidades até agora ignoradas para a investigação.

O que me pareceu sugestivo no artigo é o facto dele, simultaneamente, confirmar padrões já conhecidos como o dos efeitos penalizadores sobre a desigualdade que a pandemia traz consigo e dar corpo a algumas evidências intrigantes, ainda não suficientemente vertidas para os protocolos de boas práticas de abordagem da crise sanitária.

Uma dessas interrogações mais intrigantes, da qual já tinha feito eco neste blogue, é a evidência que este artigo confirma de que regra geral um número reduzido de surtos explicar valores muito elevados dos contágios observados, do tipo 10% de surtos estarem associado a 80% de casos. O que parece indicar que a ideia algo idiota de que nas comunidades existiriam super-contagiadores, uma espécie de super-homens da disseminação viral, pode ser substituída por uma outra, bem mais agarrada à evidência, de que existem ambientes ou entornos com elevadíssimo potencial de geração de contágios.

Paralelamente, multiplicam-se as investigações que evidenciam a muito reduzida capacidade de contágio dos transportes públicos, baseadas sobretudo no uso generalizado de máscaras, no arejamento de alguns desses transportes públicos, na não frequência habitual de grupos de viajantes e nos tempos de permanência de viagem.

A combinação desses elementos mais intrigantes com a confirmação do peso terrível da desigualdade traz resultados surpreendentes. É conhecido que os restaurantes são ambientes de risco, sobretudo se apresentarem densidades elevadas de frequência e deficientes condições de arejamento e de organização do espaço. A propósito ainda não consegui entrar num restaurante (esplanadas sim, interiores não) e pelos vistos a ciência racionaliza os meus medos. Ora o que a investigação mostra é que as famílias de maiores posses e rendimento, embora frequentando mais restaurantes do que os menos afortunados com carteiras mais vazias, são menos atingidos pela pandemia do que estes últimos. Explicação possível: as piores condições de rendimento obrigam esses indivíduos ou famílias a frequentarem restaurantes de mais pequena dimensão e com maior risco de sobrelotação, enquanto que os mais afortunados frequentam restaurantes mais caros, com menor densidade de frequências e melhores condições de organização do espaço.

Resumindo, as evidências sugerem a influência de determinados ambientes ou entornos com maior probabilidade de propagação do vírus e sobretudo a confirmação da intrigante conclusão de um número reduzido de surtos é responsável por um número muito elevado de casos. É matéria que não tenho visto suficientemente tratado na imprensa portuguesa. Não há aqui qualquer propósito de cruzada contra os muito penalizados restaurantes. Mas talvez estejam aqui contidas orientações importantes em termos de reabertura ou de manutenção em funcionamento de certos espaços. Pena é que as múltiplas decisões por cá e por todo o mundo de confinamentos ou encerramento de espaços não sejam acompanhadas de respaldo científico claro e robusto. Não haverá ciência já robusta e validada para contrapor ao compreensível desespero sem informação?



[1] O artigo é assinado por um coletivo de investigadores e designa-se de “Mobility network models of COVID-19 explain inequities and inform reopening”.

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