(A procura de um Portugal continental mais equilibrado e a reorganização dos serviços públicos de proximidade ao bem-estar da população em função desse objetivo deveriam, no meu modo de ver de andarilho do planeamento, constituir uma prioridade transversal à luz da qual todas as estratégias de desenvolvimento exigiriam avaliação. E, mais importante do que isso, parece-me crucial integrar as boas novas e esperanças que as dinâmicas territoriais nos trazem, contra a corrente dos mapas do centralismo e das políticas setoriais sem sensibilidade territorial…)
Pelos piores motivos possíveis, os da pandemia, os desequilíbrios territoriais têm-se inculcado na perceção diária dos portugueses. Impõe-se nesta matéria uma espécie de ponto de ordem. A concentração espacial de recursos não é em si uma desgraça. Existem mesmo situações em que tal concentração é necessária e se justifica através da validade de efeitos que os economistas designam de economias de aglomeração. Mas a concentração espacial de recursos tem limites, obviamente desde logo limites físicos. Mas, colocando agora de lado esse tipo de limites, já que os recursos financeiros para a construção de infraestruturas atenuadoras desses limites não são infinitos, há uma outra limitação que em Portugal considero mais importante e que tem tido muito pouca ou nula atenção. Refiro-me ao que poderia designar de capacidade e engenharia logística e de coordenação, às quais poderíamos juntar a capacidade de acomodação ambiental dos efeitos dessa concentração. Quanto mais elevados forem os níveis da concentração espacial, mais exigente é essa necessidade de capacidade e engenharia logística e de coordenação. E, nesta matéria, os países diferenciam-se claramente, já que tais capacidades estão muito desigualmente distribuídas entre os países. As razões para essa distribuição fortemente assimétrica estão certamente na qualificação de recursos humanos e na magnitude das suas massas críticas desses recursos e na capacidade da administração pública para consolidar práticas regulares de bom exercício dessas práticas logísticas e de coordenação.
Poderíamos estar um dia inteiro a discutir as razões do mais fraco desempenho nacional nestas matérias. Somos efetivamente melhores na reatividade inventiva do que na proatividade sistemática e organizada, disso não tenho dúvidas. Ora, as matérias da organização na concentração reportam menos aos desafios da reatividade do que aos imperativos da organização e da coordenação. Quero com isto dizer, que estamos muito limitados no aproveitamento de economias de aglomeração, já que as nossas capacidades de coordenação e de engenharia logísticas são bem mais baixas do que as existentes noutros países com níveis de concentração espacial similares.
Isto significa, entre outras implicações, que as economias de aglomeração decorrentes das grandes concentrações metropolitanas de Lisboa e do Porto, esta última mais policêntrica do que a de Lisboa, mas ambas sujeitas a transformações que podem alterar este estado de coisas, não são ilimitadas e estão a gerar cada vez mais externalidades negativas. A pandemia tornou isso visível, mas numa época pós-COVID 19 haverá tempo para concluir que, mesmo sem pandemia, as externalidades negativas são já demasiado evidentes. Quanto mais importância dedicarmos aos temas da sustentabilidade, mais evidente será a conclusão de que as economias de aglomeração estão a atingir limites que é necessário integrar na decisão política.
A pergunta inevitável é então a de nos questionarmos como poderemos travar essa tendência, reequilibrar o território e em consonância reorganizar a oferta de proximidade de serviços públicos de bem-estar, de modo a estimular outras “geografias” de mobilidade residencial da população?
A nossa cultura de planeamento tem prestado muito pouca atenção aos sinais que as dinâmicas territoriais nos vão proporcionando. A nossa máquina de planeamento gosta muito de planear a partir do zero, como se o território fosse uma tábua rasa. Damos pouco valor ao aproveitamento, encaminhamento e reforço de tendências que outros descobriram antes da racionalidade do planeador aparecer. É um erro fatal, entre outras razões porque se reduz fortemente a possibilidade de dar corpo e escala a muito boas práticas que vão surgindo aqui e ali. É claro que para isso precisaríamos de uma máquina de planeamento mais descentralizada, com outras lentes e sensibilidade para entender o que tais dinâmicas de esperança significam.
Antes de me concentrar nas duas notícias/reportagens que inspiraram a crónica de hoje, basta por exemplo pensar nos efeitos de atratividade e interesse que a pandemia tem gerado do ponto de vista de alguns territórios de baixa densidade. Sabemos que nos dois últimos anos os territórios do interior, particularmente os da região Centro, foram tragicamente penalizados por uma evidência que os incêndios florestais trouxeram: de repente, a perceção de que a probabilidade de morte nesses territórios era, para as mesmas condições de rendimento, idade e saúde, maior, penalizando por isso a sua atratividade. Mas eis que a pandemia veio trazer uma imagem de compensação, a baixa densidade minimamente organizada trazia vantagens à proteção contra a pandemia. Alguns sinais de procura imobiliária para primeira e segunda residência nesses territórios terão emergido. Como trabalhar esta evidência trazida embora por maus motivos?
É agora então tempo de trazer para a crónica as duas notícias/reportagens que a leitura dominical dos jornais.
Primeiro, o P2 do Público traz-nos o projeto/ensaio NA TERRA de repovoamento da Serra do Açor (link aqui), apresentada como “uma história de amor entre o homem, a natureza e os animais” nas palavras da jornalista Ana Brígida e com exposição no Centro Português de Fotografia no Porto até ao dia 3 de janeiro de 2021. Segundo a jornalista, estima-se que vivam já cerca de 1000 novos habitantes nos concelhos identificados com o Açor, população essencialmente estrangeira e o que é mais fundamental com o regresso das brincadeiras e jovialidade das crianças ao território.
Dir-me-ão alguns que é algo de pontual, que não poderá ser estendido ou disseminado. Não sei e não o saberemos antes de considerar este ensaio de repovoamento como tendência a avaliar, compreender, perceber como pode apresentar elementos suscetíveis de ser entendidos como um padrão potencial. Em regra, a chancela de pontual equivale a ser ignorada pelas políticas de desenvolvimento, tanto mais absurdo quando seguramente a experiência foi promovida em função de algum instrumento de política.
A segunda notícia vem do Diário de Notícias em papel (link aqui), de que continuo leitor fiel sobretudo devido à fabulosa plêiade de cronistas. Diz o jornal que, em 2008, o médico intensivista Nuno Catorze foi convidado a abrir no Hospital Manuel Constâncio em Abrantes uma unidade de cuidados intensivos. Sabe-se hoje que a UCI de Abrantes tem prestado um valioso serviço de ajuda às cidades e seus hospitais de Aveiro e Setúbal, com uma equipa relativamente jovem de média entre os 40 e os 42 anos.
A pergunta de um leigo em termos de organização hospitalar é também inevitável: não temos aqui uma dinâmica a explorar do ponto de vista da reorganização territorial deste tipo de serviços? Será assim tão pontual que não lhe atribuamos significado?
Ou seja, terá o planeamento que estar permanente e irremediavelmente condenado a depender do racional e prescindir da prudência e da sabedoria prática que as dinâmicas emergentes no território nos anunciam?
Não, não está. A obra de alguém que passou como um furacão pela teoria do planeamento, BENT FLYVBJERG, da Universidade de Aalborg na Dinamarca para a Saïd Business School da Universidade de Oxford, onde se dedica hoje a estudar as derivas dos grandes projetos, cavou fundo e revisito-as frequentemente. Ei-las:
- (1998) - RATIONALITY & POWER – Democracy in Practice, Londres: University of Chicago Press;
- (2001) – MAKING SOCIAL SCIENCE MATTER – Why Social inquiry fails and how it can succeed again, Cambridge: Cambridge University Press
- (2012) com Todd
Landman e Sanford Schram – Real Social Science – Applied Phronesis, Cambridge: Cambridge University Press
Boas leituras, boas reflexões.
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