"Pornopopeia", um livro de 2009 assinado pelo escritor brasileiro Reinaldo Moraes e agora dado à estampa em Portugal pela Quetzal, não é romance para todos os gostos. Muito pelo contrário até porque, admito, é quase absolutamente excessivo ou, como li algures, “meio barra pesada” – embora tenha sido escrito “para meninos e meninas crescidinhos que não se assustam à toa”. De todo o modo, trata-se de um fenómeno de imaginação, de um portento de graça, de uma leitura absorvente e de um entretenimento delirante. Ninguém terá definido melhor esta verdadeira “epopeia porno” do que Nelson Motta num pequeno texto que publicou no “Globo” com o sugestivo título “O fino da grossura”. Passo a citá-lo, com o devido apreço.
"Pornopopeia", de Reinaldo Moraes, é o melhor romance brasileiro que li — às gargalhadas — nos últimos anos. Um diretor de comerciais decadente e louco por sexo, drogas e encrencas se envolve com uma seita de Surubrâmanes e mergulha em uma epopeia tragicomicossexual de 480 páginas em que a invenção literária, a cultura pop e o rigor da linguagem estão a serviço do humor e da crítica social com uma graça e uma grossura raramente vistas juntas em nossas letras. É o fino do grosso.
É como se Henry Miller e Bukowski tivessem fumado, bebido, cheirado e viajado de ácido com o devasso Zeca pelo submundo de drogados, bebuns, putas, travecos e traficas da noite paulistana. Como um "Ulisses" doidão, priápico e bagaceiro, "Pornopopeia" é movido por uma sucessão vertiginosa de acontecimentos e narrado em monólogos interiores elaborados com linguagem forte, ágil e precisa, em que Zeca relata sua epopeia pornoescatológica debochando de suas próprias metáforas e hipérboles, avacalhando o seu relato aparentemente caótico mas baseado em uma sólida estrutura e em personagens tão sórdidos e patéticos quanto divertidos e sedutores. Poucas vezes tanta baixaria foi elevada a tais alturas.
Sem ser um livro de humor ou de sacanagem para excitar o leitor, o guia de autodestruição de Zeca dá alta ajuda para risos e gargalhadas ao evocar as forças selvagens da sexualidade e do desejo com crueza e sofisticação, oferecendo diversos níveis de leitura, entremeando a narrativa com haicais sensacionais, jogos de linguagem de pura bobagem e pensatas baratas que o próprio narrador tem prazer em desmoralizar, só para dar uma alegria extra ao leitor — além da trama eletrizante e dos personagens movidos a sexo, drogas e imaginação em doses cavalares.
Politicamente incorreto, o Ulisses bagaceiro de "Pornopopeia" é existencialmente incorretíssimo, quimica e sexualmente insaciável e literariamente inesquecível, proporcionando um prazer intelectual só comparável aos êxtases que o sexo bandalho e as substâncias proibidas dão a Zeca na epopeia que vive dentro de si mesmo e da cabeça do leitor.
Tudo estaria dito, não fora o cruzamento mental que se me despoletou entre a fruição da obra e a questão do acordo ortográfico. Que continua na ordem do dia, com o Secretário de Estado da Cultura (“Política Mesmo”, TVI 24, 28 Fevereiro) a concluir que “não há uma polícia da língua, há um acordo, que não implica sanções graves para nenhum de nós” e que “o Vasco Graça Moura autor, escritor, um dos grandes autores da nossa língua e uma das grandes figuras da cultura portuguesa escreverá como lhe apetecer”. Após ter declarado: “Do ponto de vista teórico, a ortografia é uma coisa artificial, provavelmente. E portanto, se é artificial, nós podemos mudá-la. Mas temos uma vantagem: até 2015, se é artificial, podemos corrigi-la, temos essa possibilidade; eu acho que essa possibilidade nós vamos usá-la e é uma possibilidade em aberto. Porque, além do mais, como sabe, existem tantos casos de ortografia dupla (…); eu acho que nós temos que aperfeiçoar aquilo que há para aperfeiçoar. Temos algum tempo, temos três anos agora para o fazer.”
Explico-me – o livro começa exatamente assim: “Vai, senta o rabo sujo nessa porra de cadeira giratória emperrada e trabalha, trabalha, fiadaputa. Taí o computinha zunindo na sua frente. Vai, mano, põe na tua cabeça ferrada de uma vez por todas: roteiro de vídeo institucional. Não é cinema, não é arte. É – repita comigo – vídeo institucional. Pra ganhar o pão, babaca. E o pó. E a breja. E a brenfa. É cine-sabujice empresarial mesmo, e tá acabado. Cê tá careca de fazer essas merdas. Então, faz, e não enche o saco. Pô, tu roda até pornô de quinta pro Silas, aquele escroto do caralho, vai ter agora “bloqueio criativo” por causa dum institucionalzinho de merda? Faça-me o favor.”
O livro prossegue e, a dado passo, pode ler-se: “Vamo vê aqui mais um tico de Jack, um teco de pó, um tapa na brenfa e um totó no bico da breja. Tico, teco, tapa e totó. Adoro essa língua, última flor do felácio, tão puta e bela, que sonora se desdobra em tanto pau pra quanta obra.”
Língua portuguesa? Aproveitamento das imensas sonoridades e potencialidades do calão e da gíria em que é rico o português do Brasil? Até onde deve prevalecer “aquela língua esquisita que eles falam lá no condado portucalense”? A língua é de cada um e cada um faz dela o que bem entender? O critério central é fazermo-nos compreender? Há regras a respeitar? Acordo ortográfico?
Para além de que ainda sobra tudo o resto. Como bem ilustra essa peça que é o parágrafo sobre o “marquetês”: “O papo ali era foco no cliente, agregar valor, sinergia, comunicação integrada, trade marketing, upscaling, benchmarking, opportunity scanning e o caralhaquatring. Levemente cheirado e fumado – sempre dou uns pegas e uns tirinhos no carro antes das reuniões –, eu boiava naquele patuá barbárico. Fico dois, três meses sem pegar um job, e quando volto à ativa já não entendo metade do que esses caras falam, tão rápido se renova a porra do marquetês. Uma hora lá, pra marcar presença, sugeri um slogan que tinha acabado de me vir à testa: ‘Porco só dá chabu. Peça Itaquerambu – o embutido do frango bidu.’”
E, na terra de origem de Vasco, o seu nome até poderia – poderá? – ser referenciado como “Grassa”, “Basco Grassa”…
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