Aparentemente as hostes europeias estão
calmas. Mas só aparentemente. No rescaldo da operação de reestruturação da dívida
grega e dos procedimentos em curso para reforçar a chamada “firewall” face à crise das dívidas
soberanas, que apontam para um reforço temporário do montante disponível de
recursos financeiros, os mercados parecem ter dado uma trégua à indecisão
europeia.
No entanto, há vários sinais que
apontam para uma situação menos sólida do que a aparente acalmia sugere.
O reforço do “firewall” corre o risco de ser rocambolesco. A proposta da Comissão
Europeia aponta para a combinação do reforço do fundo de resgate financeiro já
existente com o novo Mecanismo de Estabilidade Europeia que estava previsto para
ser constituído ainda este ano. A posição alemã parece ser a de aderir a este
reforço ainda que temporariamente, o que não deixa de colocar alguma incerteza
sobre o rumo da operação pois resta saber se a situação de base à qual se
aplica o reforço do fundo de resgate é mesmo temporária. O temporário
explica-se talvez mais para consumo político interno alemão, já que a senhora
Merkel sempre se opôs a esse reforço. Mas levanta-se aqui a dúvida de saber se
o apoio alemão à proposta da Comissão Europeia terá o necessário respaldo político
parlamentar.
As sombras sobre o processo emergem
todavia da ainda não resolvida situação espanhola. É que qualquer perturbação
na economia espanhola não é acomodável pelo ainda que reforçado fundo de
resgate financeiro. Com um setor privado a realizar a sua penosa desalavancagem
induzida pelas imparidades da bolha imobiliária, seria necessária alguma margem
de manobra de orçamento público que a ortodoxia fiscal das autoridades
europeias não tem permitido, mesmo tendo em conta a correção em alta do défice
público que Rajoy conseguiu passar para o presente ano.
A incerteza espanhola persiste. A
dimensão do país e a magnitude da dívida privada espanhola ampliam o potencial
problema. E nem sequer a relativa bondade com que os mercados têm acolhido a
experiência de governação de Monti em Itália disfarça o problema. E o próprio Monti, receando contágios, vem tal qual aluno bem comportado enunciar a sua
preocupação com as finanças públicas espanholas. O que não é seguramente uma
prova de elegância.
Mas as incertezas não ficam por aqui. A
tão apregoada capacidade de ajustamento da economia irlandesa parece não dar os
frutos esperados. Está em curso um pedido de deferimento por parte das
autoridades irlandesas de um pagamento ao Irish Bank Restructuring Corporation,
previsto para o fim de Março, que permitiria aquela instituição reduzir as suas
necessidades de financiamento junto do BCE. Mas mais relevante do que esse procedimento
é o facto da economia irlandesa ter no 4º trimestre de 2011 acompanhado
inesperadamente para alguns observadores o comportamento recessivo das
economias do sul, com abrandamento significativo das então bem-educadas
exportações. Expurgando o forte efeito da presença das multinacionais, o
produto nacional bruto irlandês caiu 2,2% nesse trimestre.
Com todo este clima como contexto,
seria de esperar entre os economistas europeus um forte debate sobre as
vantagens e inconvenientes de um estímulo fiscal. Mas não é o caso. A imaginação
parece esgotar-se nos mecanismos de engenharia financeira. A solução do
tesoureiro dos Conservadores em Inglaterra é primorosa: uma espécie de venda de
acesso preferencial ao 1º ministro Cameron com jantares de proximidade (a
designação é minha) bem pagos para compensar a penúria pelos vistos existente
nos cofres conservadores. Se a moda pega …
Mas o debate está aceso, não de facto na
Europa, na qual a profissão já viveu melhores dias, mas nos Estados Unidos em
que estas coisas se debatem a sério e sem peias de academia receosa e acrítica.
O debate atualmente em curso reflete as
ondas de choque de um importante “paper” publicado por uma dupla que se
reaproximou, Bradford DeLong e Lawrence Summers. Usando os mecanismos mais ou
menos convencionais da formalização de “mainstream”, DeLong e Summers mostram
que uma contração fiscal excessiva e prematura pode determinar a longo prazo um
agravamento do défice fiscal, colocando em sérias dificuldades o argumento
redentor da disciplina fiscal, hoje vendida como terapia milagrosa para a
salvação de longo prazo. De acordo com o artigo, haveria uma inversão de
prioridades: estímulo hoje, disciplina fiscal depois.
O artigo de DeLong e Summers segue-se a
um também importante artigo de Christina Romer, já aqui comentado, orientado para
a demonstração de que o estímulo fiscal do Governo Obama, embora inferior ao
necessário, conseguiu minimizar fortemente os efeitos da Grande Recessão.
Por sua vez, as diversificadas análises
sobre a Grande Depressão de 1929-30 que têm emergido, entre as quais a de Ben Bernanke,
Presidente do Federal Reserve, mostra que foi a inação da política de estímulo
macroeconómico, política monetária receosa e incipiente estímulo fiscal, que
constituiu um erro crucial na abordagem à crise de então. Na expressão de David Blanchflower, “fazer demasiado pouco é pior do que fazer de mais”.
É óbvio que me dirão que o debate tem
relevância sobretudo para o rumo das políticas macroeconómicas dos Estados
Unidos e de Inglaterra, bem como seguramente da União Europeia como um todo. A
situação dos países endividados da Europa do sul não está modelizada. Mas a
situação de Portugal, Espanha, Grécia, Itália e da própria Itália não é indiferente
ao impacto que este debate terá sobre a condução da política macroeconómica
global. A afirmação das teses do estímulo fiscal representará um aliado
precioso para uma condução dos ajustamentos em curso mais atenta aos efeitos “self-defeating”
da austeridade descontrolada.
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