quinta-feira, 29 de março de 2012

JOSÉ VALENTE

José Alberto Carvalhais de Sousa Valente. Nascido no Porto a 29 de Março de 1952. Há 60 anos, pois. Parabéns, Zé Valente!

Reproduzo abaixo a sua última crónica “Carta a um ex-aluno”, extraída das páginas do “Público” (17 Novembro 1994), onde escrevia no quadro da coluna “Da Outra Margem” (que reunia, rotativa e semanalmente, seis docentes da Faculdade de Economia do Porto: José Valente, Augusto Santos Silva, Daniel Bessa, Elisa Ferreira, Oliveira Marques e eu próprio).

“Fica desde já decretado que usarás gravata. É natural: são cada vez mais as situações em que somos obrigados a exibi-la. Felizmente, não são as mais agradáveis. Claro que terás licença de porte de jeans ao fim de semana, mas a gravata é o ritual iniciático com que marcarás a entrada na idade adulta.
Pensarás agora em fazer carreira. E carreira é uma coisa que se faz subindo. Alguns sobem por ser do partido; outros, apesar de não o serem. Distingue-os o facto de os primeiros serem muito mais numerosos e de a sua ascensão ser substancialmente mais fácil. Poderás manter as tuas convicções, mas deverás optar por um prudente lusco-fusco: a afirmação da diferença exigirá que sejas profissionalmente muito melhor para que te tolerem. Mais vale não arriscares: entre a fidelidade e a competência, o poder que temos opta sempre pela primeira.
Deverás, portanto, ser cauteloso. Antigamente, em cada organização havia um pide e toda a gente sabia quem era. Agora, tudo é muito mais leve, mais solto, mais terra-a-terra: o tipo que nos trama sorri-nos da secretária ao lado. Ou então foi a outra, aquela que, ainda na faculdade, passou, de repente, a cumprimentar só com um beijinho, como, de imediato, passaram a fazer a cabeleira dela, a manicura dela e a costureira dela. De qualquer modo, a denúncia foi feita na reunião do partido e já ninguém vai preso por subversão. Apenas nos comunicam que não fomos promovidos ou que o nosso contrato não foi renovado. Por razões estritamente técnicas.
Entre um slogan e um argumento, escolherás sempre o primeiro: a argumentação, como se sabe, é um sinal da mais confrangedora tibieza. Se te couberem em sorte alguns subordinados, assumirás o protagonismo nos bons momentos e deixar-lhes ás o ónus dos momentos maus. Os subordinados foram feitos exatamente para isso. E se, mesmo assim, te vires em dificuldades, escolherás alguns deles, elogiá-los-ás publicamente de modo excessivo e demiti-los-ás logo que possas. Se os teus erros exigirem a exposição pública de um culpado, que, pelo menos, não sejas tu. Terás, é claro, que pôr de lado esse apego à solidariedade: vives sob um poder que tem o autoritarismo como gramática, o pragmatismo como prontuário, a hipocrisia como respiração.
Claro que a indignação nos prega partidas. Se um dia a náusea começar a estrebuchar, talvez seja prudente resistires. A coerência é um luxo que, muitas vezes, se paga caro. Umas boas férias poderão ajudar.
Retemperado, poderás derramar sobre essa revolta a condescendência de um sorriso.
Mas se, mesmo assim, não te resignares à surdina do ressentimento, invocarás como justificação um excesso de juventude. Deverá ostentar nessa invocação o mais genuíno arrependimento. O poder adora arrependidos e concede-lhes sempre um perdão compadecido e o correspondente subsídio de instalação.
Mas se nada disso bastar, se o cansaço te encalhar num monte de urtigas e a repulsa meter uma bala na câmara, talvez possas improvisar conselhos a um qualquer ex-aluno. Deverás destinar a essa carta a mais secreta das tuas gavetas. Ou então, resta-te assumir que és um caso perdido. Com a vertiginosa alegria de saberes que, apesar de tudo, a adolescência continua a cascatear-te baixinho por dentro.”

Mas esta evocação não ficaria completa se não incluísse também uma referência ao político que o Zé mais admirava. Com toda a justiça, sublinhe-se. A dificuldade esteve na escolha de entre imensas passagens possíveis. Fica a seguinte, premonitoriamente escrita – o Zé tinha coisas! – há mais de dezoito anos (25 Novembro 1993):
“Cavaco Silva que, segundo sou forçado a admitir, foi, em tempos, criança, vai reincidindo nestas práticas por vocação de berço. Adivinho que, ao tapar os olhos no jogo das escondidas, punha os dedos em V – hábito que ainda hoje cultiva nos acenos à multidão. Ao jogar a bisca lambida, aparecia-lhe na mão, quando baralhava, uma invejável sequência de trunfos. No bom-barqueiro, não escolhia entre ananás e morango em função da excitação das papilas, mas porque alguém lhe soprara qual o grupo mais forte. Quando desfolhava malmequeres, não por paixão, mas por mero exercício estatístico, contava antecipadamente as pétalas para não correr riscos.
Dizem que não tem cultura democrática. Erro grosseiro – até porque a cultura se adquire. Não. Este e outros embustes não são um problema de cultura, mas de estrutura. E quem, em época de abundância, demonstrou tão pouco apego à democracia, no tempo em que as vacas se tornam esbeltas fará toda a batota que puder.”

Salve, amigo!

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