Lê-se num fôlego, tem escrita simples e agradável, inclui detalhes deliciosos e cheios de humor, sobrepõe harmoniosamente enredos sob a vaga de fundo do Chile atemorizado que se prepara para rechaçar Pinochet em referendo (1988). Refiro-me a “Os Dias do Arco-Íris”, o livro que venceu o IV Prémio Ibero-americano Planeta-Casa de América de 2011.
O autor é Antonio Skármeta, chileno de origens croatas, intelectual de esquerda (membro do MAPU que integrou a Unidade Popular de Allende), ex-exilado durante a ditadura (Argentina e Alemanha), ex-embaixador e sobretudo reconhecido pela obra “O Carteiro de Pablo Neruda” que o cinema consagrou em 1995.
Esta novela agora editada em português pela nova chancela da Afrontamento (Teodolito) é definida pelo próprio como de “dichas y quebrantos” – os mesmos dois materiais que formam o canto de Mercedes Sosa em “Gracias a la vida” – na seguinte base: “quebranto porque é uma novela que narra momentos muito duros da repressão, que doem quando se recordam, e fortuna porque o Chile encontrou, para sair dessa angústia e desse tormento, um caminho de paz que lhe deu estabilidade e progresso”.
Começa assim:
“Na quarta-feira levaram o professor Santos preso.
Nada de estranhar, nestes tempos que correm. Só que o professor Santos é o meu pai.
Às quartas de manhã temos filosofia, depois ginástica e a seguir duas aulas de álgebra.
Vamos quase sempre os dois juntos para o colégio. Ele faz o café e eu estrelo os ovos e ponho o pão na torradeira. O papá gosta do café forte e sem açúcar. Eu bebo-o traçado com leite, e embora também não lhe deite açúcar, mexo a colher na chávena como se tivesse posto.
Este mês, o tempo tem estado mau. Faz frio, cai uma morrinha e as pessoas agasalham o nariz com os cachecóis. O papá tem uma gabardina clara, de cor bege, como as dos detectives nos filmes.
Eu visto um casaco de couro preto por cima do uniforme. As gotas escorregam na pele e não conseguem molhar-me. Até ao colégio, são cinco quarteirões. Quando saímos do elevador, o papá acende o seu primeiro cigarro e vai-o fumando lentamente mesmo até à porta do liceu.
O tabaco dura precisamente até esse ponto, e então atira-o ao chão e faz-me um gesto teatral para que eu esmague a beata com o sapato. Depois entra na sala de professores para ir buscar o livro de ponto e quando entra na nossa aula pergunta onde é que tínhamos ficado, a última vez.”
E termina, quase premonitoriamente, assim:
“- Vamos voltar ao poder, Bettini – sussurrou-lhe ao ouvido. – Desta vez passo a passo, passinho a passinho, votinho a votinho.
- São as veleidades da democracia. O que a nós nos custou sangue, suor e lágrimas a conseguir, os senhores vão poder gozá-lo sem mexerem a ponta de um cabelo. Um dia, os exageros das estatísticas falarão a vosso favor. São as regras do jogo. Aplausos, senhor ministro. O que importa é que não andem a matar pessoas.”
O miolo, esse, tem muito mais com que nos preencher/surpreender…
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