domingo, 4 de março de 2012

MEMÓRIAS DA EUROPA



A atenção de primo amigo trouxe-me às mãos o texto do discurso de Helmut Schmidt no Congresso do SPD alemão em Dezembro do ano passado. A leitura do discurso mais me enraizou a ideia de que o progressivo desaparecimento das memórias vividas da Europa, da sua construção e sobretudo das condições subjacentes aos primeiros esforços para a sua institucionalização colocará em risco fatal a preservação do espírito europeu. Uma coisa é o reconhecimento da debilidade de lideranças políticas atuais. Outra coisa substancialmente diferente será o predomínio desses consulados num contexto sem memórias vividas e sem testemunho vivo dessas vozes.
A minha perceção desse risco tem sido construída sobretudo através de alguns escritos de memórias ou novelísticos de Jorge Semprun, que os evoca sobretudo na perspetiva dos registos vividos do holocausto, talvez a condição subjacente mais determinante na construção do espírito europeu. Recordo aqui um excerto da parte final de um diálogo entre Semprún e Elie Wiesel em 1995 num programa do canal franco alemão ARTE, reproduzido num pequeno opúsculo editado nessa data. O tema é a reflexão sobre a situação do último sobrevivente dos campos de concentração:
Jorge Semprun (JS): Penso nesse homem ou nessa mulher, se chegar a saber, porque não o saberá. Imagina uma equipa de televisão que chega e que lhe diz: “Caro Senhor, Cara Senhora, você é o último sobrevivente”. O que é que fará? Suicida-se.
Elie Wiesel (EW): Não. Gostaria de imaginar que lhe colocam questões, que lhe colocam todas as questões do mundo. Mas todas. E ele, escutará todas as questões. E depois, limitar-se-á a encolher os ombros. E então dirá: “ E então?” E dirá…
JS: Se não for o suicídio é o silêncio. O que dá no mesmo.
EW: É o silêncio fecundo. O último. Não gostaria de ser o último sobrevivente.
JS: Eu também não.
Gostaria também de imaginar que o progressivo desaparecimento das experiências vividas do contexto histórico que deu origem à construção europeia deixará um silêncio fecundo capaz de se sobrepor à vertigem do abismo.
O discurso de Schmidt só pode ser compreendido na perspetiva de quem proximidade a tais experiências. O seu tema central é “A Alemanha na Europa, com a Europa e pela Europa” e parte de uma ideia que dá que pensar: “No futuro próximo, a Alemanha não será um país normal”. E numa profunda digressão sobre as relações históricas entre o centro e a periferia, Schmidt escreve: “Penso ser para nós alemães decisivo que quase todos os nossos vizinhos – e para além disso quase todos os judeus no mundo inteiro – se recordem do holocausto e das infâmias que aconteceram durante a ocupação alemã nos países da periferia. Não está suficientemente claro para nós alemães que provavelmente entre quase todos os nossos vizinhos, ainda por muitas gerações, se mantém uma desconfiança contra os alemães”.
E com a lucidez de quem internaliza no seu pensamento a dimensão histórica, continua: “Os estadistas dessa época na Europa e na América (nomeio George Marshall, Eisenhower, também Kennedy, mas principalmente Churchill, Jean Monnet, Adenauer e de Gaulle ou também Gasperi e Henri Spaak) não agiram de forma nenhuma por idealismo europeu, mas sim a partir do conhecimento da história europeia até à data. Agiram no juízo realista da necessidade de impedir uma continuação da luta entre a periferia e o centro alemão”.
O desenvolvimento lógico destas ideias leva Schmidt a defender até à exaustão a unidade europeia e a necessidade da Alemanha não se isolar e não se deixar isolar. E, numa alusão ao pensamento de Habermas (a desmontagem da democracia) sobre o assunto, conclui que “Não só o Conselho Europeu, incluindo o seu Presidente, também a Comissão Europeia, incluindo o seu Presidente e os diversos Conselhos de Ministros e toda a burocracia de Bruxelas marginalizaram em conjunto o princípio democrático. Eu caí no erro, na época em que introduzimos a eleição para o Parlamento europeu, de pensar que o Parlamento europeu conseguiria o seu peso próprio. Na verdade até agora não teve nenhuma influência reconhecível na superação da crise, já que as suas discussões e resoluções não têm até agora nenhum resultado público”.

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