sábado, 1 de dezembro de 2018

LES GILETS JAUNES



(A ferro e fogo, algumas praças e ruas icónicas de Paris pareciam hoje regressadas a tempos de grande agitação e revolta, mas a preocupação essencial não parece ser essa, mas antes a do não entendimento das reais origens do movimento, essencialmente de raiva e que parece começar a desbordar a simples questão dos combustíveis. Velhos e passados tempos são aqueles em que pelo menos a violência da revolta era conhecida em profundidade e os interlocutores bem conhecidos.)

Já tinha compreendido que em torno de Emmanuel Macron se começava a formar uma desconformidade insuperável. No plano externo e europeu em particular, nenhum outro líder europeu deu mostras de tanta profundidade em como aprofundar o processo europeu e com isso combater o surto populista que grassa pelas paragens da União. Mas em contradição com essa visão de largo alcance, Macron enfrentava em França uma forte oposição, menos interessada em validar as opções europeias e europeístas do seu Presidente do que o submeter aos ditames da defesa das vantagens sociais adquiridas.

Não vou discutir a tão criticada medida dos combustíveis cujo racional não consegui ainda entender. Não sei se a medida tem algum racional de política ambiental e de descarbonização da economia francesa ou se é uma medida exclusivamente encarada como geradora de receitas, libertando recursos para outras folgas orçamentais.

Para complicar o processo e a integração possível num quadro de barganha social com um mínimo de enquadramento e controlo, o movimento dos “Gilets Jaunes” que aparece inicialmente ligado à revolta contra o impacto do aumento do preço dos combustíveis, sobretudo em matéria de transportes, parece hoje já ter abandonado os limites dessa contestação para envolver outros segmentos da sociedade francesa, ainda não totalmente clarificados.

Mas o que é indiscutível é a dificuldade de situar o movimento no plano político das suas origens. A única dimensão que parece emergir com alguma clareza é a da raiva, pura e simples. Quando os manifestantes estiveram a semana passada prestes a ser recebidos pelo primeiro-ministro francês, o que significava enquadramento e referenciação do movimento e à última hora abandonaram a ideia de serem recebidos com a exigência de que o encontro teria de ser filmado e do conhecimento público, um clique soou nas minhas interpretações. O que essa desculpa esfarrapada significava era a renúncia pura e simples do enquadramento que essa negociação poderia representar. O movimento vive enquanto inorgânico. A partir do momento em que jogue as regras de uma negociação perderá o seu élan de desconstrução, como é bem visível no comportamento violento e errático da autêntica guerrilha urbana que tem vindo a protagonizar nas ruas e praças de Paris, particularmente das mais simbólicas.

Penso que não existem ainda evidências de que o movimento esteja hoje já infiltrado por estratégias suicidas e de terra queimada de extrema-esquerda e extrema-direita, embora essa possibilidade não seja de enjeitar. Diria que de mal o menos. Sendo real essa infiltração isso acaba por atribuir às sequelas do movimento um significado bem diferente se chegarmos à conclusão, perturbadora, de que o movimento é apenas uma questão de raiva e de revolta social descontrolada e não politicamente enquadrada. O significado perturbador dessa possibilidade para a democracia é bem mais devastadora do que a da infiltração. Esta, se estiver a observar-se, é historicamente mais conhecida e as margens de manobra para a combater no plano político são mais sólidas. A hipótese da raiva é bem mais perturbadora porque não corresponde a modelos conhecidos e pode vir a corresponder a uma tendência de respostas sociais totalmente imprevisíveis.

Para além do choque que representa vermos os símbolos icónicos das nossas memórias parisienses como palcos de uma guerrilha urbana de raiva e destruição, poderemos estar a assistir, sem que o saibamos, a pronunciamentos do futuro, com os quais a aprendizagem da democracia será dura e lenta.

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