domingo, 25 de agosto de 2019

A ENTREVISTA



(Com o país ainda em grande parte a banhos e com um Presidente estranhamente calmo de intervenções nos últimos dias, a entrevista de António Costa ao Expresso passa por ser o grande momento político deste fim de agosto. Lendo a entrevista, são mais confirmações do que ideias novas que dela ressaltam.)

A entrevista de António Costa ao Expresso não traz nada de substancialmente novo ou inovador em relação à sua postura de primeiro-Ministro e ao modo como ele apreende a ação do seu próprio Governo. Mas é uma boa entrevista para confirmar traços e ideias que foram progressivamente intuídas à medida que o modelo da geringonça se afirmava e vencia os obstáculos entretanto surgidos.

Do ponto de vista da gestão macroeconómica, confirma-se a ideia de que o PS não alinhará de bom grado no aliciamento da descida de impostos, sobretudo a partir do momento em que o Governo reconhece que o esforço de investimento público é para cumprir com a manutenção do rigor orçamental que atravessou a geringonça. Tendo a alinhar com essa posição. Se bem que haja margens de aumentos de tributação para os estratos de rendimentos mais elevados, o potencial de arrecadação fiscal dessa via é curto. A grande margem de expansão da receita fiscal em Portugal está em associar à tributação um maior número de contribuintes, mas para isso o modelo económico teria que viabilizar aumentos de produtividade, de salários e de rendimento para o possibilitar. A base contribuinte em Portugal é muito escassa. A simples análise dos quadros de pessoal do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social mostra que em torno do 98º e 99º percentis da distribuição de salários estão rendimentos de grupos que não podem classificar-se como ricos, mas tão só classe média alta. E a mesma análise mostra que uma esmagadora maioria dos percentis mais baixos agrupa gente que não tem a mínima capacidade de aguentar uma base mínima de tributação. Este é que é o grande nó cego da tributação em Portugal e por isso qualquer pretensão de descida de impostos tenderá a impor importantes limitações à despesa pública, condicionando a política orçamental. É também este nó cego da tributação que a catapulta para um peso excessivo da tributação indireta, a qual como sabemos é socialmente injusta a não ser que a base de aplicação do IVA seja aprofundada do ponto de vista da proteção dos grupos mais vulneráveis.

Há, entretanto, duas matérias na entrevista de António Costa que explicitam intuições que tínhamos construído a partir das evidências da governação.

A primeira diz respeito ao seu modo de interpretar a lei que controlava os impedimentos de membros da família de governantes poderem prestar ou vender serviços ao Estado. António Costa só vê problemas nas situações de possível incumprimento das normas restritivas que caracterizavam a legislação entretanto alterada quando se provar que há manifesta intervenção e influência do membro do Governo visado na facilitação das contratualizações entretanto observadas. Embora se ressalve a coerência do 1º Primeiro nesta matéria, parece-me temerário avançar por esse caminho, sobretudo porque se trata de duas situações que devem ser diferenciadas: uma situação é aquela que resulta de membros da família do governante poderem ilicitamente tirar partido da sua proximidade familiar e política, uma outra é a possibilidade do próprio governante se movimentar ilicitamente no sentido de favorecer essa contratualização. Assim sendo, fica por dar a explicação do 1º Ministro sobre as razões que determinaram que a legislação estivesse tanto tempo para ser alterada e logo no momento em que o relato de situações de incumprimento começou a precipitar-se.

Mas não custa reconhecer que o ponto mais carnudo da entrevista é a explicitação do modo como António Costa avalia o seu relacionamento futuro com os seus compagnons de geringonça, PCP e Bloco de Esquerda. Já toda a gente tinha percebido que, por razões históricas e de socialização política, Costa tinha um relacionamento diferente com o PCP e com o Bloco. É particularmente curiosa a sua alusão de concordância com a afirmação de Jerónimo de Sousa que basta um aperto de mão para selar um acordo e se pressente que isso não se aplica ao seu relacionamento com o Bloco (um partido dos mass media e por isso menos fiável e mais volúvel). Em coerência com essa posição, Costa dá mais um passo e não hesita em classificar o cenário de um Bloco mais forte e um PS eleitoralmente mais debilitado como desastroso para o país. Isto equivale a dizer que Costa está a fazer figas para que o PCP recupere eleitoralmente e o Bloco se confine numa votação inferior às Europeias.

Como eu próprio tenho insistido neste blogue, a geringonça não teria sido possível sem a fiabilidade do PCP, tal como a situação em Espanha o demonstra cabalmente e em toda a linha. Se alguma vez tiver de expressar um voto útil à esquerda do PS a minha orientação será de o oferecer ao PCP e não ao Bloco.

Mas isto não significa que tal avaliação não coloque um problema incontornável ao PS do futuro. É que a fiabilidade do PCP coexiste com uma grande inércia de abertura a novos temas do futuro das sociedades ocidentais, ao passo que no Bloco a reduzida fiabilidade para uma solução governativa coexiste com uma maior propensão para integrar eleitorado mais jovem e menos alinhado com as forças políticas com memória. Talvez essas questões não se coloquem agora enquanto Costa for rei e senhor do PS. Mas numa futura sucessão política de liderança do PS essas questões irão emergir com toda a força. Por isso, embora ache bem que Costa separe as águas e expresse a sua maior proximidade à fiabilidade do PCP, penso que não terá grandes vantagens em hostilizar o Bloco. Há muitas formas de exercer uma crítica política que não implicam hostilização.

Sem comentários:

Enviar um comentário