(Com o país ainda em grande parte a banhos e com um
Presidente estranhamente calmo de intervenções nos últimos dias, a entrevista de
António Costa ao Expresso passa por ser o grande momento político deste fim de
agosto. Lendo a entrevista, são mais
confirmações do que ideias novas que dela ressaltam.)
A entrevista de António Costa ao Expresso não
traz nada de substancialmente novo ou inovador em relação à sua postura de primeiro-Ministro
e ao modo como ele apreende a ação do seu próprio Governo. Mas é uma boa entrevista
para confirmar traços e ideias que foram progressivamente intuídas à medida que
o modelo da geringonça se afirmava e vencia os obstáculos entretanto surgidos.
Do ponto de vista da gestão macroeconómica, confirma-se
a ideia de que o PS não alinhará de bom grado no aliciamento da descida de
impostos, sobretudo a partir do momento em que o Governo reconhece que o esforço
de investimento público é para cumprir com a manutenção do rigor orçamental que
atravessou a geringonça. Tendo a alinhar com essa posição. Se bem que haja margens
de aumentos de tributação para os estratos de rendimentos mais elevados, o potencial
de arrecadação fiscal dessa via é curto. A grande margem de expansão da receita
fiscal em Portugal está em associar à tributação um maior número de
contribuintes, mas para isso o modelo económico teria que viabilizar aumentos
de produtividade, de salários e de rendimento para o possibilitar. A base contribuinte
em Portugal é muito escassa. A simples análise dos quadros de pessoal do Ministério
do Trabalho e da Solidariedade Social mostra que em torno do 98º e 99º percentis
da distribuição de salários estão rendimentos de grupos que não podem classificar-se
como ricos, mas tão só classe média alta. E a mesma análise mostra que uma
esmagadora maioria dos percentis mais baixos agrupa gente que não tem a mínima
capacidade de aguentar uma base mínima de tributação. Este é que é o grande nó
cego da tributação em Portugal e por isso qualquer pretensão de descida de
impostos tenderá a impor importantes limitações à despesa pública, condicionando
a política orçamental. É também este nó cego da tributação que a catapulta para
um peso excessivo da tributação indireta, a qual como sabemos é socialmente
injusta a não ser que a base de aplicação do IVA seja aprofundada do ponto de
vista da proteção dos grupos mais vulneráveis.
Há, entretanto, duas matérias na entrevista
de António Costa que explicitam intuições que tínhamos construído a partir das
evidências da governação.
A primeira diz respeito ao seu modo de
interpretar a lei que controlava os impedimentos de membros da família de
governantes poderem prestar ou vender serviços ao Estado. António Costa só vê
problemas nas situações de possível incumprimento das normas restritivas que
caracterizavam a legislação entretanto alterada quando se provar que há manifesta
intervenção e influência do membro do Governo visado na facilitação das contratualizações
entretanto observadas. Embora se ressalve a coerência do 1º Primeiro nesta matéria,
parece-me temerário avançar por esse caminho, sobretudo porque se trata de duas
situações que devem ser diferenciadas: uma situação é aquela que resulta de membros
da família do governante poderem ilicitamente tirar partido da sua proximidade familiar
e política, uma outra é a possibilidade do próprio governante se movimentar
ilicitamente no sentido de favorecer essa contratualização. Assim sendo, fica
por dar a explicação do 1º Ministro sobre as razões que determinaram que a
legislação estivesse tanto tempo para ser alterada e logo no momento em que o
relato de situações de incumprimento começou a precipitar-se.
Mas não custa reconhecer que o ponto mais
carnudo da entrevista é a explicitação do modo como António Costa avalia o seu
relacionamento futuro com os seus compagnons
de geringonça, PCP e Bloco de Esquerda. Já toda a gente tinha percebido que,
por razões históricas e de socialização política, Costa tinha um relacionamento diferente com o PCP e
com o Bloco. É particularmente curiosa a sua alusão de concordância com a afirmação
de Jerónimo de Sousa que basta um aperto de mão para selar um acordo e se pressente
que isso não se aplica ao seu relacionamento com o Bloco (um partido dos mass media e por isso menos fiável e
mais volúvel). Em coerência com essa posição, Costa dá mais um passo e não hesita
em classificar o cenário de um Bloco mais forte e um PS eleitoralmente mais
debilitado como desastroso para o país. Isto equivale a dizer que Costa está a
fazer figas para que o PCP recupere eleitoralmente e o Bloco se confine numa
votação inferior às Europeias.
Como eu próprio tenho insistido neste blogue,
a geringonça não teria sido possível sem a fiabilidade do PCP, tal como a
situação em Espanha o demonstra cabalmente e em toda a linha. Se alguma vez
tiver de expressar um voto útil à esquerda do PS a minha orientação será de o
oferecer ao PCP e não ao Bloco.
Mas isto não significa que tal avaliação não
coloque um problema incontornável ao PS do futuro. É que a fiabilidade do PCP
coexiste com uma grande inércia de abertura a novos temas do futuro das sociedades
ocidentais, ao passo que no Bloco a reduzida fiabilidade para uma solução
governativa coexiste com uma maior propensão para integrar eleitorado mais
jovem e menos alinhado com as forças políticas com memória. Talvez essas questões
não se coloquem agora enquanto Costa for rei e senhor do PS. Mas numa futura
sucessão política de liderança do PS essas questões irão emergir com toda a
força. Por isso, embora ache bem que Costa separe as águas e expresse a sua
maior proximidade à fiabilidade do PCP, penso que não terá grandes vantagens em
hostilizar o Bloco. Há muitas formas de exercer uma crítica política que não
implicam hostilização.
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