domingo, 16 de outubro de 2011

AUSTERITARISMO E RETÓRICA DO CRESCIMENTO


A aceleração do dossier crise das dívidas soberanas e a sua rápida transformação em factor de instabilidade da zona euro e do financiamento de toda a economia mundial têm aumentado o número de vozes dos que se opõem tenazmente ou simplesmente questionam a via punitiva da austeridade como condição de recuperação da estabilidade dos mercados. Quer isto significar, entre outras consequências, que Portugal assinou o seu acordo de resgate financeiro em condições claramente menos receptivas à crítica da via austeritarista do que a presentemente observada. Todavia, há um aspecto menos cómodo a considerar: o relativo consenso em torno dos perigos de não retorno (ver post anterior) da via da austeridade pura e simples não tem claramente uma correspondência na formulação de propostas alternativas fundamentadas. Entre estas, têm predominado propostas segmentadas, tais como renegociação /reestruturação da dívida, eurobonds, saída do euro ou novos regimes monetários para a zona euro, reavaliação da dívida, etc.
Do ponto de vista da gestão macroeconómica da crise, temos sido em Portugal muito tributários do debate centrado na economia americana e organizado em torno do conflito “austeridade e saneamento de défices públicos como veículo de recuperação da confiança dos mercados” versus “restabelecimento da solvência da procura como veículo de recuperação do investimento”. Dito de outro modo, foi essencialmente com focagem no debate da economia americana que muito boa gente descobriu que Keynes existiu. Fica para outra ocasião a análise crítica do modo como se processou esta descoberta de que Keynes existiu. Muito boa gente envolvida neste regresso ao passado fê-lo através de vulgatas da obra de Keynes ou a partir de sínteses neo-keynesianas, correndo riscos sérios de perda de autenticidade. A vulgarização do conceito de “espíritos animais”, crucial para entender os determinantes do investimento e consequentemente da recuperação económica em períodos de contracção severa de actividade, ilustra esta minha preocupação de combate aos intermediários na nossa relação com o revisitar do legado keynesiano.
O que gostaria por agora de sublinhar é que o nosso reporte ao debate centrado na economia americana tem limites. Por mais estimulante que seja o debate tenaz que economistas como Krugman têm mantido com falcões como Barro ou mesmo Mankiw (este último com mais matizes), ficar preso a esse referencial e não o projectar na crise europeia e no caso português pode ser pouco enriquecedor para forjar uma alternativa de gestão macroeconómica mais consistente. Por muito que nos incomode, posições como a de Pacheco Pereira (Jornal Público, 15 de Outubro de 2011 e intervenção na Quadratura do Círculo de 13 de Outubro), ilustrativas de críticas insuspeitas a cortes cegos e não selectivos de despesa mas pessimistas na geração de alternativas menos dolorosas, resultam da incapacidade de gestão consistente de uma gestão macroeconómica alternativa da crise ajustada à dimensão europeia e nacional. Afinal, não há praticamente no mundo uma outra economia que possa dar-se ao luxo de manutenção de níveis tão elevados de endividamento, público e externo, como a americana o que bastaria para nos aconselhar reserva e cautela.
Esta questão preocupa-me sobretudo do ponto de vista do papel da profissão (dos economistas) no seu tempo histórico, neste caso de dificuldades e de empobrecimento estrutural generalizado. É que a ausência de forças de conhecimento entre pares para impor por via das ideias uma alternativa consistente de gestão macroeconómica tem consequências para além de um simples debate teórico para gozo intelectual da academia. Estejamos atentos à já por mim denunciada retórica do crescimento que acompanha a via punitiva actual. Todos reconhecem que sem criação de condições de crescimento a via da austeridade conduz à tragédia. Mas o que encontramos nessa retórica são meras convicções ou preconceitos que se resumem a transformar factores para um “normal” funcionamento da economia de mercado em factores “estruturais” (tão banalizada está esta palavra) de crescimento.
E o que é mais grave é transformar uma via de austeridade em processo não escrutinado democraticamente de imposição de um dado modelo social. Não está em causa a respeitabilidade e direito à escolha de soluções liberais. Mas o que temos de denunciar é a prática oculta e não validada democraticamente de substituir essa escolha por uma dada forma de gestão macroeconómica da crise. Esse vazio é particularmente visível na dificuldade hoje evidente de combinar a via da austeridade com a operacionalização de factores de crescimento na situação concreta da economia portuguesa. Modelos estruturais de crescimento diferentes (Irlanda versus Portugal, por exemplo) não apresentam condições de recuperação similares. Não se vislumbram no caso português orientações e instrumentos consequentes para explorar as situações mais positivas de resiliência empresarial na área dos transaccionáveis que terão emergido ao longo do processo de mudança estrutural que acompanhou a estagnação da década anterior. Sem o efeito dinamizador dessas experiências (mais pontuais do que desejaríamos, por certo) não será seguramente com a retórica do crescimento que ele acontecerá.

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