A aceleração do dossier crise das dívidas soberanas e a
sua rápida transformação em factor de instabilidade da zona euro e do
financiamento de toda a economia mundial têm aumentado o número de vozes dos
que se opõem tenazmente ou simplesmente questionam a via punitiva da
austeridade como condição de recuperação da estabilidade dos mercados. Quer
isto significar, entre outras consequências, que Portugal assinou o seu acordo
de resgate financeiro em condições claramente menos receptivas à crítica da via austeritarista do que a presentemente
observada. Todavia, há um aspecto menos cómodo a considerar: o relativo
consenso em torno dos perigos de não retorno (ver post anterior) da via da
austeridade pura e simples não tem claramente uma correspondência na formulação
de propostas alternativas fundamentadas. Entre estas, têm predominado propostas
segmentadas, tais como renegociação /reestruturação da dívida, eurobonds, saída
do euro ou novos regimes monetários para a zona euro, reavaliação da dívida,
etc.
Do ponto de vista da gestão macroeconómica da crise,
temos sido em Portugal muito tributários do debate centrado na economia
americana e organizado em torno do conflito “austeridade e saneamento de
défices públicos como veículo de recuperação da confiança dos mercados” versus
“restabelecimento da solvência da procura como veículo de recuperação do
investimento”. Dito de outro modo, foi essencialmente com focagem no debate da
economia americana que muito boa gente descobriu que Keynes existiu. Fica para
outra ocasião a análise crítica do modo como se processou esta descoberta de
que Keynes existiu. Muito boa gente envolvida neste regresso ao passado fê-lo
através de vulgatas da obra de Keynes ou a partir de sínteses neo-keynesianas,
correndo riscos sérios de perda de autenticidade. A vulgarização do conceito de
“espíritos animais”, crucial para entender os determinantes do investimento e
consequentemente da recuperação económica em períodos de contracção severa de
actividade, ilustra esta minha preocupação de combate aos intermediários na
nossa relação com o revisitar do legado keynesiano.
O que gostaria por agora de sublinhar é que o nosso
reporte ao debate centrado na economia americana tem limites. Por mais
estimulante que seja o debate tenaz que economistas como Krugman têm mantido
com falcões como Barro ou mesmo Mankiw (este último com mais matizes), ficar
preso a esse referencial e não o projectar na crise europeia e no caso
português pode ser pouco enriquecedor para forjar uma alternativa de gestão
macroeconómica mais consistente. Por muito que nos incomode, posições como a de
Pacheco Pereira (Jornal Público, 15 de Outubro de 2011 e intervenção na
Quadratura do Círculo de 13 de Outubro), ilustrativas de críticas insuspeitas a
cortes cegos e não selectivos de despesa mas pessimistas na geração de
alternativas menos dolorosas, resultam da incapacidade de gestão consistente de
uma gestão macroeconómica alternativa da crise ajustada à dimensão europeia e
nacional. Afinal, não há praticamente no mundo uma outra economia que possa
dar-se ao luxo de manutenção de níveis tão elevados de endividamento, público e
externo, como a americana o que bastaria para nos aconselhar reserva e cautela.
Esta questão preocupa-me sobretudo do ponto de vista do
papel da profissão (dos economistas) no seu tempo histórico, neste caso de
dificuldades e de empobrecimento estrutural generalizado. É que a ausência de
forças de conhecimento entre pares para impor por via das ideias uma
alternativa consistente de gestão macroeconómica tem consequências para além de
um simples debate teórico para gozo intelectual da academia. Estejamos atentos
à já por mim denunciada retórica do crescimento que acompanha a via punitiva
actual. Todos reconhecem que sem criação de condições de crescimento a via da
austeridade conduz à tragédia. Mas o que encontramos nessa retórica são meras
convicções ou preconceitos que se resumem a transformar factores para um
“normal” funcionamento da economia de mercado em factores “estruturais” (tão
banalizada está esta palavra) de crescimento.
E o que é mais grave é transformar uma via de austeridade
em processo não escrutinado democraticamente de imposição de um dado modelo
social. Não está em causa a respeitabilidade e direito à escolha de soluções
liberais. Mas o que temos de denunciar é a prática oculta e não validada
democraticamente de substituir essa escolha por uma dada forma de gestão
macroeconómica da crise. Esse vazio é particularmente visível na dificuldade
hoje evidente de combinar a via da austeridade com a operacionalização de
factores de crescimento na situação concreta da economia portuguesa. Modelos
estruturais de crescimento diferentes (Irlanda versus Portugal, por exemplo) não
apresentam condições de recuperação similares. Não se vislumbram no caso
português orientações e instrumentos consequentes para explorar as situações
mais positivas de resiliência empresarial na área dos transaccionáveis que terão
emergido ao longo do processo de mudança estrutural que acompanhou a estagnação
da década anterior. Sem o efeito dinamizador dessas experiências (mais pontuais
do que desejaríamos, por certo) não será seguramente com a retórica do
crescimento que ele acontecerá.
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