Não necessariamente influenciado
pelo trágico momento em que a economia portuguesa se encontra, mas com
repercussões no modo como pode ser superado, existe hoje um debate teórico de
amplitude crescente sobre a incapacidade da teoria macroeconómica fundamentar
uma saída consistente e duradoura para as sequelas da Grande Contracção de
2008/09. A falência desses referenciais transparece quer na inconsistência das
soluções de coordenação macroeconómica a nível mundial, quer nas terapias de
abordagem à crise das dívidas soberanas periféricas e ao contágio latente para
a consistência do Euro. Mais do que falhas de governação (que também as há)
parece haver uma inconsistência do quadro teórico que deveria fundamentar essa
governação. Assim, à perspectiva da austeridade como pretenso factor de acalmia
das expectativas nos mercados contrapõem, hoje, muitos economistas a
necessidade de restabelecimento de uma procura solvente a nível mundial. A
economia americana continua a ser o grande espaço de referência desse debate,
embora mal representado no actual momento político: uma política económica vacilante
e de compromisso do Presidente Obama mede forças com o radicalismo económico
republicano.
Como é óbvio, o rumo desta
relação de forças interessa aos Portugueses, embora a ciência macroeconómica
que por cá se vai fazendo continue olimpicamente a não querer misturar-se com
os sobressaltos da realidade e das evidências. Toda a estratégia materializada
no memorando de resgate financeiro (vulgo acordo TROIKA) parece também ignorar
o debate, assumindo uma perspectiva de saída única, punitiva e por isso
pretensamente regeneradora de países indisciplinados e gastadores.
No contributo de hoje gostaria
sobretudo de destacar dois aspectos, até para servirem de guiões iniciais para
outras reflexões a fazer no âmbito deste blogue. O primeiro diz respeito à
necessidade de compreender que este debate, embora crucial, não pode dominar
integralmente a discussão dos termos do ajustamento da economia portuguesa. O
segundo sublinha o aparecimento dos primeiros rombos na convicção de que a via
punitiva da austeridade pode conduzir ao fracasso da solução. Estes dois pontos
merecem alguns tópicos introdutórios para situar futuros desenvolvimentos em
posts posteriores.
Quanto ao primeiro, não pode
ignorar-se que o problema português é mais complexo do que o “simples” amansar
da dívida pública. A falência do modelo de crescimento potenciado pelo farol da
despesa pública em torno dos não transaccionáveis (a deriva infraestrutural do
País) exige um novo padrão de despesa pública. Tenho para mim que o
reconhecimento desta imperiosa mudança não significa rendição pura e simples à
via punitiva. Mesmo com outro contexto mundial mais favorável, este padrão de
despesa pública seria sempre insustentável.
Quanto ao segundo dos tópicos,
o desconforto com a via punitiva surge cada vez mais audível na cacofonia a que
temos estado sujeitos nos últimos dois meses. Um tema comum tem marcado a
referida cacofonia: o êxito do resgate exigirá mais tempo de ajustamento e, sem
a viabilização de factores de crescimento, estará ameaçado. Vários testemunhos
têm surgido e esta semana, inesperadamente, Manuela Ferreira Leite e o
Presidente da República (reflexão conjunta de amigos para sempre?) juntaram-se
ao coro. Mas o problema é que para a abordagem que fundamenta a via punitiva o
crescimento é tão só uma retórica. Uma leitura profunda do memorando de resgate
mostra como as procuradas políticas de crescimento são uma figura de estilo. O
melhor exemplo dessa incapacidade de compreensão dos factores de crescimento é
a trapalhada da redução da TSU que parece ter pelo menos nas estruturas do FMI
uma massa estranha de apoiantes: cada cabeça sua sentença. Até a mente
brilhante da conselheira portuguesa desta instituição (“estelinha” que a guie …)
chegou hoje à conclusão (Jornal de Negócios) que, afinal, a redução prevista não
pode ser aplicada. Não me admiraria que mesmo com este desnorte não seja fácil
convencer o representante do FMI no acordo de que não somos propriamente um
laboratório. Mas, pelos vistos, a desorientação não fica por aqui: não é que o
Director FMI para a Europa propõe (revista EXAME, abundantemente citado na
imprensa económica) soluções incompatíveis com as próprias regras de intervenção
da instituição!!! Tudo isto resultado de uma inconsistência de abordagem: a via
punitiva integra o crescimento apenas numa perspectiva retórica e é incapaz de
compreender a perspectiva estrutural do crescimento.
Voltaremos a estas incongruências.
Mansa ou brava, dívida pública é sempre dívida pública. Mas, embora concordando com a ideia de fundo, não posso deixar de dizer que a "nossa" dívida pública merece um castigozinho. E a dívida privada também!
ResponderEliminarAC