sábado, 22 de junho de 2019

A CONTUNDÊNCIA DE CLARA



(A Pluma Caprichosa é uma primeira página /editorial de revista que tem, regra geral, muita força e que marca a nossa impressão neste caso da E Revista do Expresso. O texto de hoje é particularmente contundente acerca do atavismo português, tanto mais visível e penoso quanto mais o mundo muda à nossa volta.)

Não se fica indiferente à prosa de Clara Ferreira Alves (CFA). E se alguém padecer dessa indiferença que se trate pois a dita prosa é suficientemente estimulante, direta, incisiva.

O texto de hoje tem uma particular contundência para com o nosso estatismo, não porque há muita gente a capturar as benesses do Estado, mas antes porque revelamos uma total incapacidade de compreender as mudanças que nos rodeiam lá fora e por isso anteciparmos a resposta ao futuro.

Esta incapacidade de compreender o futuro, antecipar-lhe as manhas e encruzilhadas, prepararmos em conformidade as opções que melhor responderiam a esse futuro desafiante, é frequentemente diagnosticada por quem pensa o país. Ainda este último fim-de-semana, na minha intervenção na Conferência do Rotary Clube do Porto na Casa da Música, lembrei palavras que já ouvi ao Manuel Sobrinho Simões, e que partilho amplamente, sobre a nossa intrigante capacidade para sermos reativos nas piores circunstâncias possíveis e dar mostras simultaneamente de grande incapacidade de planear prospectivamente o futuro, compreendo o que muda à nossa volta. Essa remissão para as palavras de Sobrinho Simões foi entre tantas outras mensagens que destilei para quele auditório uma das poucas que mereceu a bondade do jornalista que cobriu o acontecimento e que organizou um destacável do Jornal de Notícias na semana passada. Quero crer que foi a referência a Sobrinho Simões que condicionou a atenção do jornalista e não propriamente o tema.

Esta dualidade entre reatividade criativa e total incapacidade de construir futuro é sobretudo paradoxal num tempo em que na sociedade portuguesa se multiplicam referenciais de planeamento, não direi como cogumelos em solos férteis para o seu florescimento, mas em quantidade e diversidade suficiente para abandonar a tentação de fazer valer esse dom da reatividade. Mas como homem do planeamento que ainda sou, embora cada vez mais consciente das limitações das políticas públicas e de muito do “wishful thinking” que circula por aí aos mais variados níveis, tenho de concluir que a multiplicidade desses referenciais obedece a formalismos impostos mas não desejados pela nossa burocracia administrativa com a bênção política. Aliás, a diversidade desses referenciais constitui uma forma travestida das incoerências do planeamento português, no qual ninguém presta contas em termos de articulação, complementaridades e avaliação de resultados.

Ainda há dias, numa reunião de trabalho no âmbito da preparação de processos de programação 2021-2027 a nível sub-regional, neste caso para o nível de intervenção das comunidades intermunicipais (CIM), me apercebi do “non sense” que a programação dos Fundos Estruturais representa. Vale a pena contar.,

Na antecâmara do PT2030, francamente mal preparado pela governação de Passos Coelho e neste caso específico de Poiares Maduro (Ministro) e Castro Almeida (secretário de Estado), os territórios NUTS III com CIM reconhecidas e em atividade foram convidados a desenhar estratégias para o período de programação. Essas EIDT – Estratégias Integradas de Desenvolvimento Territorial pretendiam dar resposta a instrumentos de integração territorial de projetos que as autoridades comunitárias queriam disseminar e destinavam-se a servir de base e fundamento a processos de contratualização que as CIM assinariam com os programas operacionais regionais e algumas políticas públicas. Pois os planos contratualizados, para além de, sob a estúpida mania portuguesa de tudo homogeneizar, terem assumido dimensões e variantes que nada se pareciam com as opções estratégicas assumidas e concertadas pelos municípios no âmbito das CIM, deram origem ainda a outras perversidades. Uma das mais flagrantes perversidades, só possível num país de “Paradinhos” da CFA ou de invertebrados como dizia em termos provocadores Unamuno, consistiu em vários ministérios setoriais (tipo Trabalho e Solidariedade Social) terem acesso aos pactos contratualizados apenas pelo simples facto de o POR era a única gaveta capaz de proporcionar o graveto necessário à política pública em causa. Vejam a falta de decoro institucional. Assinas um Pacto que, para além de não refletir as opções para que trabalhaste, contém medidas que ministérios setoriais executarão com o graveto dos programas operacionais regionais. Mas, além disso e elevando a desfaçatez a um nível inimaginável essa participação de tais ministérios faz-se sem qualquer reporte às CIM que deveriam gerir o referido Pacto que assinaram e contratualizaram. Ou sejam, alguém decretou uma espécie de “direito de pernada” dos tempos modernos, perante a passividade de Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional e CIM incrédulas.

Reativos como somos na perspetiva da adaptação rapidamente jogamos este jogo das perversidades apenas por alguns cobres. Compreendo a contundência de CFA mas se a destemida jornalista soubesse destes mundos de que ela está longe e afastada estou em crer que seria mais contundente. A autora do Pluma Caprichosa tem um tipo de irreverência que está nos antípodas das irreverências tipo Bloco de Esquerda. Mas quando fila uma perversidade é implacável. Somos bons na autocrítica, mas regra geral não tiramos daí consequências que se vejam na ação.

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