(Arquivos RTP)
(Estou um pouco nostálgico e recorro ao impecável arquivo da Companheira para utilizar material de cartas de abril de há muitos anos para fixar aqui as minhas memórias do primeiro 1º de Maio em democracia, passado no quartel do Lumiar. Algo irrepetível sobretudo pelo que representou de manifestação espontânea de comemoração da liberdade, pois seis dias depois do 25 de abril já dava para perceber que não tinha sido um sonho efémero.)
Na memória que aqui e ali já se vai turbando, recordo sobretudo o clamor que se percebia de dentro do quartel, perceção talvez induzida pelos testemunhos que nos chegavam de fora, de colegas que participavam em missões de segurança no exterior e que contavam no bar, nas salas de conversa ou nos inúmeros pontos da parada. Era de facto um ruído de fundo surpreendente, pois não correspondia ao ruído da Cidade nos outros dia. Pode assim dizer-se que as minhas recordações do primeiro 1º de maio em democracia são intuições sonoras, depois confirmadas pela impressionante presença humana das celebrações propriamente ditas.
O ambiente tinha sido preparado nos dias anteriores e num dos dias anteriores, talvez 27 ou 28 de abril, o Lumiar tinha recebido uma visita inesperada.
Recorro às minhas próprias palavras que, numa carta de abril, descreviam esse momento:
“(…) Ainda há muito pouco tempo, lá na EPAM chegou um conjunto de individualidades ligadas à nova RTP e que tinham por objetivo estabelecer contactos connosco, informando-nos da nova orientação que em princípio terá a RTP. E sabes quem vinha? O Artur Ramos, o Rogério Paulo, o Bernardo Santareno, o Mário Castrim (este aperto de mão nunca mais o devo esquecer), o Fernando Assis Pacheco, o Luís Stau Monteiro, o Cardoso Pires e assistir às manifestações de regozijo entre eles é coisa que dá muito para recordar. Como vês, sob o ponto de vista humano o momento é indescritível. Posso contar-te o caso interessantíssimo de um preso político há mais de 20 anos que só com 2 tostões no bolso pede a um motorista de táxi que ande, ande sem parar por Lisboa e lhe mostre a Cidade que não via há muito tempo.”
É este o registo, essencialmente afetivo, do meu primeiro 1º de maio em democracia.
Hoje, 47 anos depois, num registo mais objetivo e num contexto em que a reformulação dos processos e dos contextos de trabalho irá representar um enorme desafio de reflexão e mobilização, vale a pena denunciar com a maior das veemências possíveis o caráter infame das relações de trabalho e exploração na agricultura intensiva que a pandemia veio trazer à luz do dia.
Veio o Presidente da Câmara Municipal de Odemira a terreiro, tal qual virgem púdica e ofendida, clamar por meios legais para intervir em tal desvalorização da vida humana. Como se esta situação não fosse conhecida há já muito tempo e que eu próprio em escritos profissionais sobre o Alentejo alertava para que o que se passava com a mão de obra migrante era não só incompatível com o mundo do trabalho decente e da decência humana mas também com a própria imagem do Alentejo que as autoridades regionais visam disseminar. O que é a mesma coisa que dizer que se não fosse a pandemia a infâmia não teria chegado à primeira atenção das pessoas. Não sei se o vazio de fiscalização é do agora extinto SEF, do Ministério da Agricultura ou da Economia ou de quem quer que seja, entendam-se e legislem se necessário. Imagino que parte destas atividades intensivas até possam ser muito “smart”, mas como português decente e identificado com as exigências do trabalho decente dispenso bem os euros de exportação que estas atividades devem estar a produzir.
Como é óbvio, o problema também está na origem das migrações. Enquanto nesses países de origem o que espera os potenciais migrantes forem rendimentos abaixo da subsistência combinados com a violência, o “should I stay, should I go?” permitirá sempre aceitar o desconhecido da exploração mais segura e a intervenção dos intermediários mais sórdidos e gananciosos.
Nota final:
A referência especial feita a Mário Castrim explica-se pelo facto de ter sido ele no Diário de Lisboa Juvenil de saudosos tempos a comentar uns arremedos de contos (creio que dois publicados) que este vosso escriba e amigo submeteu a esse suplemento.
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