(Um dos conceitos simultaneamente mais fascinantes e controversos da economia do tempo longo parece querer voltar e há gente de respeito a posicionar-se nessa matéria. Esse conceito é o de destruição criadora. Vejo no regresso desse interesse algo de positivo, que vem na linha do que tenho vindo a trazer para este espaço de reflexão. Estamos de facto em tempos de valorar a mudança estrutural do capitalismo e a destruição criadora esteve sempre no coração dessa perspetiva. É também uma metáfora do tempo longo. Podemos iludir-nos com outras modas mais retribuidoras do “curto prazismo” na economia. Mas, mais tarde ou mais cedo e independentemente dos protagonistas, volta sempre. Por isso, ceder a essa tentação e fazer desaparecer o conceito da formação básica em economia é criminoso. Por outras palavras, um crime fruto do mencionado “curto prazismo” de vistas curtas ou de miopia profunda.)
Dizia o meu colega na Faculdade de Economia do Porto, Professor Mário Graça Moura, numa nota pedagógica aos nossos alunos de Economia da Inovação e do Conhecimento de introdução à obra de Schumpeter, que a personalidade e obra de Joseph Schumpeter eram de tal maneira vastas, complexas e controversas que constituem em si mesmas uma forma de representar a meta-evolução do pensamento económico.
A “destruição criadora” transporta-nos para o conflito permanente entre o velho e o novo que a inovação, dinâmica central e motora do capitalismo, implica, tornando obsoletas inovações que viram antes a luz do dia. A associação das duas palavras “destruição” e “criadora” é em si simbólica da profundidade que a inovação representa. A sua criação pode pressupor a destruição e, por esta via, a ambivalência sobre o emprego está ela própria criada sob a forma de interrogação. Será que os empregos que o “novo” vai suscitar para ser produzido compensarão os empregos destruídos que a obsolescência vai determinar? Historicamente, tal compensação aconteceu sempre, o que não significa que vá acontecer sempre. É isso o que a indeterminação da inovação representa.
À medida que estudamos mais profundamente as relações de tensão entre as novas inovações e o que pode tornar-se potencialmente obsoleto, apercebemo-nos que a tensão é mais complexa do que a vulgata da sua formulação permite antever. Há inovações anteriores que reagem à ameaça de destruição, reinventando-se, prolongando, renovadas, a sua vida útil, parecendo ressurgir de uma morte anunciada e coexistindo com as novas inovações. A história da tecnologia está repleta dessas experiências fascinantes de ressurgimento tecnológico. É que o desenvolvimento da inovação nunca é uma questão meramente tecnológica e de superioridade intrínseca de uma tecnologia em relação a outra. Os grandes economistas da tecnologia como, por exemplo, Nathan Rosenberg mostraram-nos, por exemplo, que os motores de combustão quando surgiram não eram à altura indiscutivelmente superiores aos motores elétricos em termos tecnológicos estritos. A sua superioridade que veio a aprofundar-se dependeu de muitas outras concomitâncias, opções de formação superior, decisões políticas, entre outras. E nos tempos de hoje, não será certamente por razões de inferioridade tecnológica que os motores diesel poderão desaparecer face ao mundo do “elétrico”, mas antes e fundamentalmente mercê de decisões políticas que venham a ser tomadas em matéria de internalização das alterações climáticas.
Quando Schumpeter projetou a inovação e a destruição criadora na explicação das flutuações económicas de longo prazo (esse mistério do ciclo longo de cerca de 40-50 anos aproximadamente), a destruição criadora era associada às consequências dos períodos de exuberância que a fase expansiva do ciclo determinava. As fases expansivas de uma onda de inovação geram uma cascata de oportunidades económicas de novos investimentos que tendem a fazer entrar no mercado projetos mais especulativos, “curto prazistas” na perpetiva do aproveitamento dessas oportunidades, que estão nos antípodas dos projetos que criaram a onda de inovação. Ora, sabemos que quanto mais exuberante essa euforia na perceção de oportunidades se apresenta, mais violenta será a destruição criadora. E já não estou a entrar no tema complexo de saber se essa destruição é algo de estritamente essencial a que um ambiente de novas ondas de inovação possa ser criado. Há quem considere essa sugestão que vem de algumas passagens de Schumpeter como uma cedência ao mundo do equilíbrio que é de todo incompatível com o próprio conceito de inovação que é em si uma rotura de equilíbrio. Essa questão levar-nos-ia muito longe e às eventuais contradições de Schumpeter (estudadas entre outros por Mário Graça Moura um conhecedor germanófilo da obra de Schumpeter e de Francisco Louçã). Há quem interprete essa possível cedência de Schumpeter como uma consequência contraditória do seu apreço intelectual por Léon Walras (o pai do equilíbrio geral).
Estamos em tempos de crise económica, à qual poderão suceder processos de recuperação com inovações cujos contornos não podemos ainda dominar. Veja-se, por exemplo, o que poderão representar as revoluções no transporte aéreo, nas viagens e no turismo, na transformação digital, na organização do trabalho e do território. Os velhos temas da destruição criadora vão regressar. De que magnitude e contornos de destruição criadora vai o capitalismo necessitar para que o novo normal gera uma cascata de inovações para um novo período de crescimento?
Mas o apelo desse regresso não fica por aqui. Há uma outra matéria que está no coração do debate central de hoje, devem ou não as patentes de produção das vacinas COVID-19 ser liberalizadas?
Philippe Aghion, um dos neo-schumpeterianos mais prestigiados na academia (um dos poucos franceses que tal como Piketty, Tirole e poucos mais têm saltado a barreira do francês), cuja obra recente abre com a sua capa este post, mas também Paul Romer, que não é um schumpeteriano, situam bem o dilema profundo da destruição criadora. O valor económico da inovação tem de ser compensado ou retribuído para que esta possa ser estimulada. Regra geral, essa compensação é concretizada por via de rendas que as patentes possibilitam durante um período determinado para compensar o valor do investimento inicial. Mas essas rendas não podem funcionar como um obstáculo a que novas inovações possam emergir no mercado. Recorde-se que, mesmo sendo objeto de patentes, quando uma inovação surge no mercado a ideia base pode ser compreendida e replicada por possíveis interessados na sua valorização.
A discussão das vantagens ou inconvenientes de se liberalizar as patentes das vacinas aprovadas oficialmente e com isso favorecer a sua produção mundial mais alargada de modo a cobrir a generalidade dos países mais pobres é uma questão bem mais complexa do que a compreensão do dilema intrínseco da destruição criadora.
Em primeiro lugar, o investimento massivo que tornou possível as Pfizer-Biontech, Moderna, AstraZeneca, Janssen e outras que virão a terreiro não foi propriamente um investimento privado típico. A investigação pública associada e o investimento público que foi possível mobilizar foram de grande magnitude. Logo, as tais rendas necessárias para justificar o estímulo não podem ser calculadas conforme é habitual. Em segundo lugar, as gigantescas compras públicas que foram realizadas dessas vacinas constituem em si próprias uma compra pública de forte alcance que mitigaram o risco do desconhecido e consta que as farmacêuticas se defenderam bem na proteção desses riscos com os contratos celebrados. Em terceiro lugar, a investigação colaborativa que esteve na base de um período de tempo tão curto para a implementação das vacinas não pode ser ignorada. Em quarto lugar, a investigação que tornou possível as duas famílias de vacinas que estão no mercado não nasceu do nada, os investigadores "apoiaram-se nos ombros de outros gigantes" e certamente não pagaram por isso. E, finalmente, e talvez mais importante do que todos os outros argumentos, uma cobertura temporalmente desigual da vacinação do mundo representa o que nós economistas designamos de externalidade negativa. O mundo perde e o valor protetor das vacinas (ou seja o seu valor social) não será completo enquanto não cobrir significativamente a população mundial. A alternativa é o bloqueio da globalização e isso pode ter efeitos desastrosos.
Por esta modesta incursão, é possível perceber quão fascinante e controverso é o conceito de destruição criadora. Retirá-lo da formação básica em economia é o que designaria de liberalização da estupidez.
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