(Regresso à obsessão da HBO com uma minissérie que me tira o fôlego, alicerçada sobretudo no talento inclassificável de Kate Winslet, uma das mulheres mais poderosas e amarguradas que alguma vez a televisão nos deu, ocupando o ecrán e parecendo que nos confundimos com a própria personagem. Na crueza daquelas imagens e daquela comunidade acho que compreendo melhor a América que gerou Trump e que ainda o não fez desaparecer.)
Pela breve pesquisa que consegui realizar, o ambiente em que Mare of Easttown é filmado ficcionaliza a verdadeira Easttown Township, que não deve ter por agora muito mais de 11.000 habitantes, localizada no county de Chester na Pensilvânia, costa este dos EUA.
Mas independentemente da fidelidade ao território original, a Easttown de Mare Sheehan, detetive da polícia local, reúne as condições-tipo de uma infinidade de territórios suburbanos, com uma classe média que já há muito deixou de o ser, mergulhada no álcool, nas drogas, nos suicídios, em toda a ordem de desvios e perversões sexuais, mas em que milagrosamente persiste um sentimento de comunidade, para o bem e para o mal. O estado das relações de Mare Sheehan com essa comunidade ilustra bem a ambivalência dessa persistência da comunidade. Acossada por não ter conseguido resolver o desaparecimento de uma jovem, filha de uma amiga próxima, que se debate com um cancro. Amada de novo quando Mare juntamente com o seu colega detetive Colin Zabel consegue, com o custo da vida deste último, localizar a jovem desaparecida e uma outra, liquidar o agressor e raptor e devolver à comunidade as duas jovens, embora com um assassínio de uma outra jovem ainda por resolver.
A Easttown original tem origens galesas, primeiro com a chega de Quakers e depois de anglicanos. Este traço não é visível na Easttown ficcionada, mas percebe-se que há ali uma amálgama de pertenças e identidades e, mais do que outra coisa, percebe-se que ficar naquela comunidade é para sempre ficar amarrada a um campo diminuto de possibilidades.
Visualizando os seis de sete episódios de que se compõe a minissérie, não pude deixar de recordar duas leituras que me ajudaram a compreender as verdadeiras raízes do trumpismo: o espantoso e volumoso “WHITE TRASH – The 400-Year Untold History of Class in America” de Nancy Isenberg (Viking – Penguin Press Randon House, de 2016 e “HILLBILLY ELEGY – A Memoir of a Family and Culture in Crisis” de J. D. Vance (William Collis, 2016). Claro que relativamente a estas duas magníficas obras, a Easttown de Mare Sheehan é um microcosmos que não reflete a globalidade do fenómeno e do problema que lhe vem associado, mas é uma ilustração a meu ver perfeita do fenómeno mais global.
Para além de Mare, duas outras mulheres ocupam a cena com uma força que nos impressiona, uma espantosa Jean Smart interpretando o papel de Helen, mãe de Mare e de Julian Nicholson no papel da melhor amiga de Mare. Aliás, o panorama global aponta para a relevância de todas aquelas mulheres, afinal as garantes de que a comunidade resiste, designadamente em torno da sua equipa feminina de basquetebol de outros tempos, em que Mare se destacou enquanto jovem.
O ambiente de Easttown também se manifesta em algumas das canções de Bruce Springsteen, ou seja é matéria exclusiva para gente com grande sensibilidade e memória. Sem esses traços, o ambiente de Easttown e a complexidade dos problemas e infortúnios que se abatem sobre os membros da comunidade é campo livre para os discursos mais trogloditas que se possam imaginar e os “intelectuais assassinos” de Trump compreenderam isso melhor do que ninguém.
Estou febril de curiosidade por visualizar o sétimo e último episódio, ontem ainda não disponível. Creio que se estreia nos EUA hoje mesmo, por isso a H B O Portugal não nos deve desiludir.
Mas, independentemente do que o último episódio me possa trazer, Kate Winslet (Mare, que nome bonito) está já entre os meus referenciais de mulheres no cinema.
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