(Um pouco técnico)
(Não conheço
exatamente que animosidade pessoal Paul Romer poderá ter alimentado relativamente
aos pais da macroeconomia estabelecida, Robert Lucas Jr. e Ed Prescott, mas o que sei é que a sua crítica é demolidora e
ajuda a compreender que afinal o rei ia nu, nuzinho de todo)
Os leitores deste blogue
já compreenderam como aprecio o espírito combativo de Paul Romer, um economista
de formação físico-matemática que tinha tudo de mais favorável para ser um economista
académico de primeira linha e que hoje se considera um simples practitioner, e por isso interessado em
que medida pode confiar na ciência económica para suportar as suas tomadas de
decisão. Tenho a certeza que conjuntamente com o Professor Mário Rui Silva
fomos nós que introduzimos a obra de Romer em Portugal e na formação em
economia. Tenho pessoalmente orgulho nisso porque são esses contributos simples
que me permitem ajuizar, sem falsa modéstia ou qualquer prurido, que
acrescentei muito mais conhecimento à geração de estudantes que tive na FEP do
que os professores que tive o azar de me ensinarem macroeconomia, pois estes últimos
cercearam-me muitas vias de progressão no conhecimento que só o autodidatismo
permitiu parcialmente superar.
É relevante anotar que Paul
Romer é um economista de sólida formação matemática e física, o que lhe permite
discutir na origem algumas das derivas que segundo ele estão a minar irremediavelmente
a tradição científica da economia e sobretudo a possibilidade dela evoluir através
da livre crítica do que se considera a economia estabelecida. Penso que este
blogue foi o único em Portugal a divulgar a mais recente incursão de Romer pela deriva
da “mathiness”. O termo designa a
utilização oculta da matemática como fonte referencial de rigor, cerceando
simultaneamente a hipótese de crítica. Romer está cada vez combativo e mais
recentemente ainda é autor de um autêntico libelo acusatório contra a regressão
de conhecimento em que a macroeconomia se encontra. O artigo está já acessível
a todos, embora vá ser publicado no The American Economist (ver link aqui) revista de
uma fundação americana, na qual a conferência de Romer foi proferida no início
deste ano. O artigo chama-se “The Trouble with
Macroeconomics” e põe em relevo o retrocesso de três décadas em
que a macroeconomia está mergulhada, a partir do momento em que passou a ser
comandada pelo que Romer chama a “post-real economics”.
Justificam-se algumas,
breves, linhas para contextualizar o domínio da post-real
economics e o seu domínio da economia estabelecida.
Os anos 70 foram anos de
significativa contrarrevolução na ciência económica. A evidência então manifestada
da “estagflação”, com coexistência de inflação e desemprego, foi utilizada como
matéria crucial para arrasar com os modelos de inspiração keynesiana que suportavam
a política económica e monetária, mostrando a sua incapacidade preditiva e
deixando os decisores desamparados em matéria de suporte à tomada de decisão. Essa
abertura de flanco da economia então estabelecida aconteceu em simultâneo com o
aparecimento de modelos macroeconómicos nos quais as flutuações nos grandes agregados
macroeconómicos eram o resultado de choques imaginários (é célebre a conhecida
sombra no sol) e não de ações realizadas por pessoas concretas, simples agentes
económicos ou decisores de política. A partir do reconhecimento que a academia
concedeu à teoria dos “Real business
cycles”, em que o “real” significa o oposto de monetário, mas
provocado por causas simplesmente imaginárias, que são posteriormente alimentadas
pela imaginação delirante dos econometristas na fase de calibração dos seus
modelos.
Vou ignorar a dimensão
mais matemática e econométrica da crítica demolidora de Romer (mais uma vez
mostrando a justeza do aforismo “se queres bem
criticar domina bem o que vais criticar”) e aí Romer está como
peixe na água. Partindo do princípio básico de que a matemática não pode
justificar de per si o valor verdadeiro de um dado facto, Romer tem parágrafos
deliciosos sobre as piruetas de pura imaginação que os modelos macroeconómicos DGSE (Dynamic General Stochastic Equilibrium)
têm de fazer para a sua “identificação” e atribuição de valores aos parâmetros.
A sofisticação de tais piruetas e a impossibilidade de testar os valores atribuídos
a muitos parâmetros acabam por negar o princípio básico da progressão no conhecimento:
abrir os resultados obtidos à mais ampla possível crítica e revisão. A partir do
momento em que existe ofuscação premeditada da possibilidade de teste, crítica
e revisão, estão criadas as condições para que a ciência se transforme em
religião. E aqui, ou seja, na desmontagem da religiosidade da macroeconomia estabelecida,
Romer é particularmente demolidor denunciando o tribalismo sectário dos que
dominam a economia estabelecida. Numa analogia curiosa com derivas similares na
física (a chamada teoria das cordas, string theory), Romer traz para a sua denúncia o conjunto cabalístico de sete
elementos de lealdade ao mestre, assumindo o que poderíamos designar de
comportamento tribal: (i) autoconfiança praticamente sem limites; (ii) uma
pouco usual comunidade monolítica; (iii) um sentido de identificação com o
grupo similar ao de uma fé religiosa ou plataforma política; (iv) um sentido agudo
de fronteira entre o grupo e outros académicos; (v) uma desconsideração e
desinteresse absolutos pelas ideias, opiniões e trabalho de quem não pertence
ao grupo; (vi) uma tendência para interpretar a evidência otimísticamente,
acreditar em resultados exagerados ou incompletos e negar sempre a
possibilidade de uma teoria poder estar errada; (vii) uma falta de apreciação
dos riscos que um dado projeto de investigação pode envolver”. Romer
mostra que quando os “mestres” são iluminárias matemáticas, a reverência e a
lealdade acentuam-se, corroendo as normas mais salutares da ciência. O preço
para quem rompe e ousa comprometer a lealdade ao grupo é muito alto. Romer
confessa que só conseguiu escrever a sua denúncia por já não se considerar um
académico e certamente nunca irá replicar o Nobel do seu alvo de estimação
(Robert Lucas Jr.)
E permitam-me que acabe
com uma citação: “O problema para mim não é que os economistas
digam coisas inconsistentes com os factos. O verdadeiro perigo é que outros
economistas não se preocupem com o facto de haver macroeconomistas que não têm
em conta esses factos. Uma indiferente tolerância para com o erro óbvio é ainda
mais corrosiva para a ciência do que um premeditado e assumido aconselhamento
do erro”.
Bravo Paul. Neste blogue
há tolerância zero para com a indiferente tolerância. A nova geração de Phd’s
em economia está cheia de lealdade para com a ofuscação dos factos. O debate na
academia portuguesa está abaixo de cão e os cães que me perdoem. Hoje, rende
publicar por publicar se possível protegido por um grupo qualquer na economia
estabelecida, o que é suficiente para prosperar nas revistas de rankings mais elevados,
também elas dominadas pelo mesmo sentido de lealdade inibidora da crítica e da
revisão. Enquanto isto, as evidências mostram que os modelos DGSE foram à vida do
ponto de vista do seu contributo para ultrapassarmos o impasse pós 2007-2008.
Um conselho para quem
esteja a começar, sobretudo se forem à procura de uma resposta para o retrocesso
da macroeconomia. Preparem-se e ganhem arcaboiço para suportar a desconsideração,
o desconhecimento premeditado, o sentimento de se sentir isolado e eventualmente
até a dificuldade de pagar as contas ao fim do mês. Se possível dominem bem o
que pretendem criticar. Há crítica interna e externa, mas não desvalorizem a primeira.
E para a não desvalorizar o rigor formal e matemático pode ser necessário. Coragem.
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