sexta-feira, 16 de setembro de 2016

TORPEDO NO PORTA-AVIÕES DA MACROECONOMIA ESTABELECIDA




(Um pouco técnico)

(Não conheço exatamente que animosidade pessoal Paul Romer poderá ter alimentado relativamente aos pais da macroeconomia estabelecida, Robert Lucas Jr. e Ed Prescott, mas o que sei é que a sua crítica é demolidora e ajuda a compreender que afinal o rei ia nu, nuzinho de todo)

Os leitores deste blogue já compreenderam como aprecio o espírito combativo de Paul Romer, um economista de formação físico-matemática que tinha tudo de mais favorável para ser um economista académico de primeira linha e que hoje se considera um simples practitioner, e por isso interessado em que medida pode confiar na ciência económica para suportar as suas tomadas de decisão. Tenho a certeza que conjuntamente com o Professor Mário Rui Silva fomos nós que introduzimos a obra de Romer em Portugal e na formação em economia. Tenho pessoalmente orgulho nisso porque são esses contributos simples que me permitem ajuizar, sem falsa modéstia ou qualquer prurido, que acrescentei muito mais conhecimento à geração de estudantes que tive na FEP do que os professores que tive o azar de me ensinarem macroeconomia, pois estes últimos cercearam-me muitas vias de progressão no conhecimento que só o autodidatismo permitiu parcialmente superar.

É relevante anotar que Paul Romer é um economista de sólida formação matemática e física, o que lhe permite discutir na origem algumas das derivas que segundo ele estão a minar irremediavelmente a tradição científica da economia e sobretudo a possibilidade dela evoluir através da livre crítica do que se considera a economia estabelecida. Penso que este blogue foi o único em Portugal a divulgar a mais recente incursão de Romer pela deriva da “mathiness”. O termo designa a utilização oculta da matemática como fonte referencial de rigor, cerceando simultaneamente a hipótese de crítica. Romer está cada vez combativo e mais recentemente ainda é autor de um autêntico libelo acusatório contra a regressão de conhecimento em que a macroeconomia se encontra. O artigo está já acessível a todos, embora vá ser publicado no The American Economist (ver link aqui) revista de uma fundação americana, na qual a conferência de Romer foi proferida no início deste ano. O artigo chama-se “The Trouble with Macroeconomics” e põe em relevo o retrocesso de três décadas em que a macroeconomia está mergulhada, a partir do momento em que passou a ser comandada pelo que Romer chama a “post-real economics”.

Justificam-se algumas, breves, linhas para contextualizar o domínio da post-real economics e o seu domínio da economia estabelecida.

Os anos 70 foram anos de significativa contrarrevolução na ciência económica. A evidência então manifestada da “estagflação”, com coexistência de inflação e desemprego, foi utilizada como matéria crucial para arrasar com os modelos de inspiração keynesiana que suportavam a política económica e monetária, mostrando a sua incapacidade preditiva e deixando os decisores desamparados em matéria de suporte à tomada de decisão. Essa abertura de flanco da economia então estabelecida aconteceu em simultâneo com o aparecimento de modelos macroeconómicos nos quais as flutuações nos grandes agregados macroeconómicos eram o resultado de choques imaginários (é célebre a conhecida sombra no sol) e não de ações realizadas por pessoas concretas, simples agentes económicos ou decisores de política. A partir do reconhecimento que a academia concedeu à teoria dos “Real business cycles”, em que o “real” significa o oposto de monetário, mas provocado por causas simplesmente imaginárias, que são posteriormente alimentadas pela imaginação delirante dos econometristas na fase de calibração dos seus modelos.

Vou ignorar a dimensão mais matemática e econométrica da crítica demolidora de Romer (mais uma vez mostrando a justeza do aforismo “se queres bem criticar domina bem o que vais criticar”) e aí Romer está como peixe na água. Partindo do princípio básico de que a matemática não pode justificar de per si o valor verdadeiro de um dado facto, Romer tem parágrafos deliciosos sobre as piruetas de pura imaginação que os modelos macroeconómicos DGSE (Dynamic General Stochastic Equilibrium) têm de fazer para a sua “identificação” e atribuição de valores aos parâmetros. A sofisticação de tais piruetas e a impossibilidade de testar os valores atribuídos a muitos parâmetros acabam por negar o princípio básico da progressão no conhecimento: abrir os resultados obtidos à mais ampla possível crítica e revisão. A partir do momento em que existe ofuscação premeditada da possibilidade de teste, crítica e revisão, estão criadas as condições para que a ciência se transforme em religião. E aqui, ou seja, na desmontagem da religiosidade da macroeconomia estabelecida, Romer é particularmente demolidor denunciando o tribalismo sectário dos que dominam a economia estabelecida. Numa analogia curiosa com derivas similares na física (a chamada teoria das cordas, string theory), Romer traz para a sua denúncia o conjunto cabalístico de sete elementos de lealdade ao mestre, assumindo o que poderíamos designar de comportamento tribal: (i) autoconfiança praticamente sem limites; (ii) uma pouco usual comunidade monolítica; (iii) um sentido de identificação com o grupo similar ao de uma fé religiosa ou plataforma política; (iv) um sentido agudo de fronteira entre o grupo e outros académicos; (v) uma desconsideração e desinteresse absolutos pelas ideias, opiniões e trabalho de quem não pertence ao grupo; (vi) uma tendência para interpretar a evidência otimísticamente, acreditar em resultados exagerados ou incompletos e negar sempre a possibilidade de uma teoria poder estar errada; (vii) uma falta de apreciação dos riscos que um dado projeto de investigação pode envolver”. Romer mostra que quando os “mestres” são iluminárias matemáticas, a reverência e a lealdade acentuam-se, corroendo as normas mais salutares da ciência. O preço para quem rompe e ousa comprometer a lealdade ao grupo é muito alto. Romer confessa que só conseguiu escrever a sua denúncia por já não se considerar um académico e certamente nunca irá replicar o Nobel do seu alvo de estimação (Robert Lucas Jr.)

E permitam-me que acabe com uma citação: “O problema para mim não é que os economistas digam coisas inconsistentes com os factos. O verdadeiro perigo é que outros economistas não se preocupem com o facto de haver macroeconomistas que não têm em conta esses factos. Uma indiferente tolerância para com o erro óbvio é ainda mais corrosiva para a ciência do que um premeditado e assumido aconselhamento do erro”.

Bravo Paul. Neste blogue há tolerância zero para com a indiferente tolerância. A nova geração de Phd’s em economia está cheia de lealdade para com a ofuscação dos factos. O debate na academia portuguesa está abaixo de cão e os cães que me perdoem. Hoje, rende publicar por publicar se possível protegido por um grupo qualquer na economia estabelecida, o que é suficiente para prosperar nas revistas de rankings mais elevados, também elas dominadas pelo mesmo sentido de lealdade inibidora da crítica e da revisão. Enquanto isto, as evidências mostram que os modelos DGSE foram à vida do ponto de vista do seu contributo para ultrapassarmos o impasse pós 2007-2008.

Um conselho para quem esteja a começar, sobretudo se forem à procura de uma resposta para o retrocesso da macroeconomia. Preparem-se e ganhem arcaboiço para suportar a desconsideração, o desconhecimento premeditado, o sentimento de se sentir isolado e eventualmente até a dificuldade de pagar as contas ao fim do mês. Se possível dominem bem o que pretendem criticar. Há crítica interna e externa, mas não desvalorizem a primeira. E para a não desvalorizar o rigor formal e matemático pode ser necessário. Coragem.

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