(Aguentei firme até ao início da madrugada para seguir uma das surpresas mais significativas que a democracia portuguesa nos proporcionou, a começar por uma surpreendente descida da abstenção em plena onda Omicron. Não sei se foi o universo dos votantes grisalhos que se movimentou, confinados ou não, em isolamento ou em qualquer outro estatuto, já que não se viu movimento relevante na hora indicativa, mas a verdade é que em plena pandemia reforçar participação e alterar robustamente os resultados de duas semanas de “track polls” como nunca tinha havido na comunicação social portuguesa é obra de um eleitorado que não para de nos surpreender. Como tinha assinalado nos meus “bad feelings”, tenho matéria para concluir que a guinada de António Costa na última semana da campanha foi decisiva, não só não derrapou como conseguiu orientar a viatura para uma maioria absoluta, capitalizando uma das mais precipitadas decisões que a esquerda não PS terá assumido na história da democracia portuguesa, fruto do que eu considero uma anomalia da nossa democracia, a excessiva concentração do debate político na discussão do Orçamento de Estado.)
Certamente que alguns dos traços estruturais do comportamento de António Costa não vão alterar-se na sequência da estrondosa vitória ontem alcançada, produzindo um mapa eleitoral que até arrepia. Mas, depois de seis anos de governação, quatro em regime de uma surpreendente geringonça que passou pelos jornais mais influentes de todo o mundo e mais dois anos de conflitualidade à esquerda e pandemia no lombo de todos os nós e do Governo em particular, conquistar uma inequívoca maioria absoluta é obra que não está ao alcance de muita gente. Por isso “chapeau”, muito respeitosamente.
Curiosidade única da política interna, desta vez não foi Rui Rio a poder reivindicar-se de que comentadores, sondagens e toda a dinâmica de ampliação de tendências eleitorais em que a comunicação social mergulhou ávida nas últimas semanas não compreendiam de todo o pulsar do eleitorado português. Foi um António Costa a que muitos tinham feito já o enterro político (e desculpem, não é embirração até porque gosto imenso do que a personalidade escreve em estilo único, mas estou ansioso por ver o fácies de Clara Ferreira Alves a comentar esta vitória de Costa) a ultrapassar esses limites do cansaço de governação, contrariando toda a encenação de falso suspense que as track polls das últimas semanas nos proporcionaram.
Por mais bizarro que possa parecer, podemos imaginar que afinal um dos mais criticados e, temos de convir estranhos, atos comunicacionais de António Costa, a apresentação na televisão no debate com Rui Rio da capa do Orçamento de Estado para 2022 chumbado na Assembleia, mesmo antes de passar à discussão na especialidade, acabou por ser validado nas urnas. Creio que é Susana Peralta que o diz na sua crónica pós-eleições de domingo, que afinal o Orçamento de 2022 teve a sua vingança, servida do modo mais frio que se possa imaginar.
A ciência política não tem demonstrado com clareza se as condições macroeconómicas e seu reflexo nas condições de vida pesam ou não fortemente nas decisões do eleitorado. Mas, como escrevi em alguns posts e ontem o Daniel Oliveira o sublinhava num dos seus comentários, não se entendia bem como é que a gestão eficaz do conservadorismo fiscal à portuguesa que o Governo tinha conseguido fazer da pandemia, a manutenção do emprego em níveis elevados, a própria gestão da pandemia e a reposição de rendimentos realizada nos primeiros quatro anos da geringonça batiam com o ressurgimento eleitoral de Rio e do PSD. Havia ali qualquer coisa que não batia certo.
Rui Rio mergulhava ontem no mais completo espanto quando concluía que à esquerda o voto útil tinha funcionado e o PS tinha conseguido essa proeza e à direita tinha sucedido o contrário. Não compreendo esse espanto. Não gosto de malhar em quem perde e não será obviamente desta vez que o irei fazer. Mas sobretudo nos debates com essa direita, sobretudo IL e CDS, Rio não fez o mínimo esforço para justificar e afirmar a importância desse voto útil. Antes pelo contrário, não raras vezes Rio assumiu aquela figura notável do que eu considero ser um dos melhores e mais intrigantes filmes de Woody Allen, ZELIG, aquela personagem camaleónica que tem o dom de se confundir com as personagens com quem convive, transformando-se nas mesmas. O problema é que retirando o caso do CDS, os programas da IL e o não programa de protesto do Chega são totalmente incompatíveis com o do PSD. E quando, tal qual ZELIG apurado, Rio condescendeu com as diatribes de Cotrim de Figueiredo e da IL, estava obviamente a cavar a sepultura do voto útil.
Na sua declaração final de ontem, Rio foi igual a si próprio, a ponto de trazer para a sua declaração a comunicação de que a sua campanha não tinha deixado dívidas. Mas era e custa-me dizê-lo um homem atordoado, atropelado por um veículo pesado sem saber exatamente o que lhe tinha acontecido, estava com vida, mas ele próprio a confessar, em português ou alemão, de que não tinha argumentos para justificar a sua presença com uma maioria absoluta do PS. O que é uma das mais bizarras e surpreendentes declarações de demissão que alguma vez ouvi na política portuguesa e internacional.
E, arrepia-me dizê-lo, que se confirma uma das constantes mais aterradoras da política portuguesa – a impossibilidade de um líder regional chegar a primeiro-Ministro.
No fim de contas, uma maioria absoluta de contornos avassaladores, com registos impensáveis em distritos como Bragança (em que poucos votos no interior fizeram desta vez a diferença), Vila Real, Viseu, Leiria e um resultado notável em Setúbal que talvez tenha sido a expressão máxima, fora da capital, do voto útil à esquerda e que deixou a própria Ana Catarina Mendes surpreendida.
Chapeau por isso.
Mas os problemas estão aí, a começar por uma seca tenebrosa que vai assombrar a entrada em funções do novo Governo.
A crítica permanente deste blogue será contributiva, como sempre o foi a pensar sobretudo nos problemas estruturais (não os que andam normalmente associados às banalizadas reformas estruturais da Troika) e na imperiosa necessidade desses constrangimentos não virarem ladainha do impossível e do complicado.
Acredito que Costa tem a perceção da responsabilidade que lhe assenta a partir de ontem nos ombros, visto como caso de estudo por alguma imprensa internacional. Por estranho que pareça as dificuldades da governação vão começar efetivamente agora. Decisões firmes e simultaneamente a criação de um clima de diálogo político que faça esquecer a maioria absoluta de Sócrates, ele também derrotado amplamente na noite de ontem, constituem um desafio político de grandes proporções. E de uma saída precoce da vida política, Costa poderá estar na margem de uma passagem pela democracia portuguesa que honra o que de melhor ela pode conter.
Espero que não me desiluda, porque já não tenho idade para grandes desilusões.
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