(Uma manhã de sol de inverno espantosa por terras de Caminha, tempo para uma passagem pela praça de todos os afetos, a leitura dos jornais que se impõe, viagem sossegada para votar antecipadamente em Vila Nova de Gaia, com uma organização impecável, filas nem vê-las, sem a mínima possibilidade de insegurança sanitária, por vezes ficamos espantados com os extremos do bom e do mau deste país. E dou comigo por sugestão do Health at Glance 2021 da OCDE e do pensamento de Timothy Taylo no Conversable Economist, link aqui, a pensar como estaremos comparativamente de saúde).
Estava à espera de mais lenha nos debates eleitorais em torno da saúde. Se bem que o PSD tenha mantido o pé na argola com a revelação desajeitada do seu modelo de saúde sujeita à demonstração de recursos, que como o demonstrei em posts anteriores tende regra geral a antecipar uma trajetória de longa degradação dos sistemas públicos que praticam essa cláusula, continuo a achar que o debate continua a ser mal colocado. Defender a qualificação do sistema público de saúde como eu a entendo não significa ignorar que as práticas dos seguros privados e da medicina convencionada de sistemas como o da ADSE determinaram um desenvolvimento da oferta de saúde privada que já não pode ser ignorada. Não ignorar essa presença significa entre outras coisas que a coabitação dos dois regimes no âmbito de um modelo em que o sistema público deve representar a prioridade fundamental coloca problemas complexos a resolver por exemplo do ponto de vista da gestão e atração de recursos humanos ao sistema público. A sobre-simplificação do debate político imposto pela sua mediatização leva a que questões desta natureza fiquem de fora da agenda, colocando o eleitor perante uma séria preocupação de não saber o que o espera. E isso é lamentável.
O gráfico que abre este post relaciona-se com um indicador que é muito utilizado para comparar sistemas de saúde: o esforço de alocação de recursos ao sistema de saúde em percentagem do PIB. Portugal situa-se acima da média da OCDE a 38 países, com um valor que em 2020 era de 10,1%. Acima de Portugal, encontramos o grosso da coluna das nações mais desenvolvidas, sugerindo alguma correlação entre nível de desenvolvimento económico e peso da despesa em saúde no PIB. Mas o que mais impressiona neste gráfico é a posição dos EUA, com um valor para mim surpreendentemente elevado face aos outros países, algo que não está bem em linha com o que se vê escrito sobre o sistema de saúde americano.
O gráfico acima descreve o comportamento da despesa em saúde per capita, ao abrigo da qual a posição portuguesa muda em relação à média OCDE 38, mantendo-se os EUA numa posição ainda surpreendentemente elevada face aos restantes países mais desenvolvidos. Note-se que neste gráfico se explicita o peso da despesa que as famílias realizam do seu próprio bolso.
O problema americano reside no facto dos valores elevados da despesa em saúde, global ou per capita, não estarem em linha com o que conhecemos da sociedade americana em termos de indicadores básicos como esperança de vida à nascença (veja-se o gráfico abaixo) ou de taxas de mortalidade infantil ou de causas evitáveis (estima-se que os valores mais atualizados de pandemia agravem esta questão). O que me faz admitir que são sobretudo as questões de desigualdade interna à sociedade americana que explicarão esse desvio.
Mas, seguindo a intuição do sempre perspicaz Timothy Taylor no Conversable Economist, o que me causou mais perplexidade é o confronto destes valores com a expressão percentual do modo como as populações dos diferentes valoram como má ou muito má a prestação do seu serviço de saúde. Embora a comparação entre estes valores esteja sujeita a fortes enviesamentos, espanta que a percentagem de americanos que consideram má ou muito má a prestação do seu serviço de saúde seja relativamente baixa, enquanto por exemplo Portugal apresenta uma das taxas mais elevadas (15,2%). Quando se procura controlar esta má perceção pela desigualdade na distribuição do rendimento, apenas 50% da população portuguesa com mais de 15 anos declara encontrar-se de boa saúde e a diferença de avaliação entre os rendimentos mais altos e mais baixos é muito significativa,
Retiro daqui uma interpretação que é em termos gerais a seguinte. Entre o posicionamento de Portugal que resulta de indicadores globais de despesa em saúde e o que se observa em termos de perceção da qualidade dos serviços existem abundantes fatores de ruído. Note-se entretanto que, do ponto de vista dos indicadores de resultado em matéria de saúde (esperança de vida, mortalidade e outros), a posição portuguesa está relativamente em linha com o esforço de alocação de recursos públicos. O que explica então que do ponto de vista da perceção da qualidade dos serviços (pressupondo claro está que não enviesamentos nos inquéritos e tendo sempre a desconfiar deste tipo de informação) se verifique o gap que assinalámos anteriormente?
Parece haver aqui dissonâncias entre o modo como funciona o sistema e a maneira como é avaliada pelos utentes a prestação do seu serviço, o que se trata de matéria que inquina todo o debate político nesta matéria.
Sem comentários:
Enviar um comentário