(Confesso-vos que não tinha intenções de ler tão cedo o livro apresentado pelo Fernando Teixeira dos Santos por estes dias e que suscitou tanto regozijo entre o universo de “Fepianos”. A minha lista de leituras económicas em fila de espera é longa, não consigo despachar a tempo o que me vai chegando pela Amazon, pois o trabalho profissional ainda me ocupa uma grande parte do tempo disponível, cada vez gosto mais de dormir e sou um eterno devorador de sugestões culturais aliciantes para lá do mundo da economia e, meus caros, há tanta coisa de interessante nesse mundo da transgressão disciplinar. E, como tenho insistido por estas páginas, não gostaria de ser membro de um clube que me aceitasse como sócio, por isso o mundo “Fepiano” já me diz pouca coisa, apesar de a ele ter dedicado uma longa parte da minha vida. Gosto de olhar para a frente e não para trás. É uma forma de me manter velho, mas vivo. Além disso, o meu colega de blogue já se tinha referido ao livro, tenho confiança na sua análise crítica, li coisas interessantes nas entrelinhas da sua curta recensão e por isso decidi que haveria tempo de me dedicar a tal leitura. Acresce, não menos importante, que começo a ficar farto de explicações em livro de gente que passou por governos PS e que ao que parece não ficou lá muito de bem com a sua consciência, como é aliás visível por exemplo no pensamento do Daniel Bessa que prefacia o livro de Teixeira dos Santos. O exercício de funções públicas deste calibre e natureza, muito louvável pela prestação de serviço público que representa, terá sempre implicações, custos e benefícios e irrita-me um pouco que se pretenda estar de bem com Deus e com o Diabo. E no caso de Teixeira dos Santos ser ministro de Sócrates é cá um Karma … Mas isso faz parte do exercício do serviço público. O que me interessa verdadeiramente é o tipo de reflexão que estas experiências despertam do ponto de vista da economia como disciplina de suporte à política económica e será sempre nessa perspetiva que me vai interessar a leitura do livro do Teixeira dos Santos.)
Resumindo, estava o “Mudam-se os Tempos, Mantêm-se os Desafios” sossegado na fila de espera da minha ampla secretária em casa, nos últimos tempos menos arrumada pelos efeitos do teletrabalho (curiosamente a secretária do escritório de Matosinhos nunca esteve tão irrepreensivelmente arrumada …) quando numa passagem rápida pelo Facebook, que só frequento, esclareço, para alargar um pouco a audiência a este modesto blogue me apercebi que a publicação do livro do Teixeira dos Santos estava também associada a um regresso do autor e colega aquelas páginas. Não vou especular sobre o timing escolhido para esse regresso, é da vida e ponto final.
Mas o que despertou a minha atenção foi o que considero ser uma verdadeira preciosidade protagonizada por um post de Teixeira dos Santos, que reproduzo aqui em imagem, já que não consegui fazer copy do texto da mensagem:
Claro que pensei duas vezes, para quê perturbar a lista de espera de obras para analisar? Mas a leitura do post gerou-me uma ampla e completa desconfiança. E explico porquê. Essa história de “isto é verdade para uma família, para o Estado e para o país como um todo” é uma refinada falácia que povoou a defesa obstinada que alguns macroeconomistas fizeram do uso da austeridade na gestão macroeconómica da crise de 2007-2008 e das dívidas soberanas, para mal dos nossos pecados de infrator e cobaia da terapia. Aqueles que se recusaram a participar no enterro precoce de Keynes nos anos 70 da estagflação e da crise da política económica e que nunca acreditaram que o ciclo económico estava domesticado pela via da política monetária (enterrando a política fiscal), sabiam que Keynes deu por certo voltas ao túmulo pela confusão entre famílias, Estado e País.
Ora, isto é particularmente relevante quando o post de Teixeira dos Santos defende que a “austeridade” é uma invenção do discurso político e mediático, ignorando aparentemente (não ignoro que se trata de um post e por isso dou o benefício da dúvida ao autor, dependente por isso da leitura do livro, de que tenho de mudar a posição na fila de espera). Conviria recordar, e não fazê-lo é suspeito, que se desenvolveu um longo e frutífero debate entre os macroeconomistas que, em meu entender, destruiu a falácia a que me referia anteriormente. E ao contrário do que poderá parecer aos menos avisados, os contributos mais relevantes nessa controvérsia não pertenceram a economistas esquerdistas ou a caminhar para essa classificação. Não é objetivo deste meu post fazer alarde do muito que li nessa altura para demonstrar como é precipitado ignorar o debate desenvolvido em torno da abordagem “austeridade”. Basta-me recordar aqui o perspicaz contributo do economista Richard C. Koo, analista no NOMURA SECURITIES, “The Escape from Balance Sheet Recession and the Quantitative Easing Trap”, publicado pela Wiley em 2015. A leitura desta obra é suficiente para compreender como, num contexto em que famílias e empresas estavam no mundo a diminuir dívidas, sujeitar os setores públicos a uma profunda compressão de despesa representou um suicídio macroeconómico desnecessário.
E ao contrário do que mentes apressadas poderão pensar, não adianta retorquir que lá está este a ignorar o peso da dívida em Portugal. Estou perfeitamente à vontade nesta questão, pois posso demonstrar que, em trabalho de avaliação intercalar do chamado QCA III em Portugal, alertei para a perigosa deriva que a alocação de recursos em Portugal estava a atravessar, porque já nessa altura a expansão dos não transacionáveis na economia portuguesa, visível na subida do preço relativo dos serviços não em linha com o desenvolvimento económico português, estava a provocar sérios estragos nos indicadores de rendibilidade na economia portuguesa. A mais elevada rendibilidade do capital no setor dos não transacionáveis estava a dar sinais perversos ao investimento em Portugal, que se afastava dos transacionáveis, onde se ganha ou perde a competitividade portuguesa. E também nesse trabalho chamei a atenção para os efeitos perversos que a subida dos preços relativos dos serviços estava a provocar na taxa de câmbio real da economia portuguesa. Como sabemos, em contexto de zona euro, a taxa de câmbio real da economia portuguesa é fortemente sensível ao preço relativo dos nossos serviços. Que eu me recorde só Carlos Costa no Banco de Portugal alertou para esta deriva dos não transacionáveis, por exemplo analisando o comportamento do crédito bancário por setor de atividade.
Sou sensível por isso à questão da dívida e ao que ela implica de racionalização do próprio debate macroeconómico em Portugal. E a prova da minha coerência são os dois posts neste blogue sobre o que considero ser o êxito do conservadorismo fiscal do Governo PS na gestão da pandemia (e não sou propriamente um adepto fervoroso de João Leão). Arriscaria a dizer que a inesperada maioria absoluta do PS também passou por aqui.
E cá estou em plena leitura do Mudam-se os Tempos, Mantêm-se os Desafios do Professor Teixeira dos Santos. Tenho cerca de 70 páginas já lidas com atenção e para já alinho sem hesitações com a indicação da produtividade como o principal desafio do país. Voltarei a esta questão quando já tiver avançado mais profundamente na leitura do livro.
Porque é a debater que a gente se entende e a mim interessa-me perceber em que medida o exercício em concreto da política económica nos ajuda a enriquecer o debate das ideias macroeconómicas. Isso para mim é que é importante. Dispenso bem o que poderá ser aliciante para os jornalistas e escuso de explicar do que é que se trata.
Um abraço ao Fernando Teixeira dos Santos.
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