quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

O PUZZLE UCRANIANO

 

(Andamos nós entretidos com as interrogações eleitorais internas e, às portas da União, estamos perante uma escalada de guerra potencial que nos deveria preocupar e que coloca a nu todas as incongruências do modelo europeu, demasiado inorgânico para tempos que não se recomendam não apenas a velhos como eu, mas também aos jovens Europeus que querem construir vidas com esperança. A Ucrânia e o seu posicionamento na geopolítica mundial que como país soberano tem todo o direito a exercer está no centro de toda esta ameaça. Os tiques e práticas ditatoriais de um ex-líder do KGB estão no centro da disputa e nota-se um padrão no contínuo de provocações para tirar do sério as autoridades europeias e explorar as suas fragilidades. Mas isso não significa que devamos ignorar o facto de muito provavelmente as altas instâncias europeias andarem, para ficar de bem com Biden, a prometer coisas à Ucrânia que manifestamente não poderão satisfazer ...)

Não é difícil imaginar que o padrão recorrente de provocações a que Putin se tem dedicado nos últimos tempos devem ser antes de mais entendidos como a manifestação de uma incomodidade: a desvalorização do papel da Rússia (com ganas de voltar a ser a Grande Rússia da história) na geopolítica da concertação mundial não serve de modo algum as pretensões internas de Putin na região que a Rússia admite pertencer à sua área de influência. São antes um entrave a esse reconhecimento e isso Putin não pode aceitar, decidindo por isso manifestar-se pela pior maneira, ameaçando, movimentando-se militarmente para além de todos os limites aceitáveis, jogando no cravo da diplomacia mas acenando com a ferradura de uma ameaça de invasão, patrocinando ataques cibernéticos à Ucrânia que têm o ADN de hackers russos.

No plano do direito internacional mais puro, a Ucrânia como país independente e soberano (já com intrusões russas no seu território) tem toda a liberdade e direito de definir o seu posicionamento, seja o de querer integrar-se na visão ocidental do mundo e nas suas estruturas de defesa, seja o de em alternativa entregar-se nas malhas da autoridade russa (caso da Bielorrússia) ou de reclamar para si um estatuto de neutralidade (como o tem feito a Moldávia). Mas há aqui uma variável que não tem sido transparente. Não sabemos exatamente o que as altas instâncias europeias e os próprios EUA têm prometido à Ucrânia e não é necessário ser um analista internacional de primeira para perceber que EUA e União Europeia não podem prometer exatamente a mesma coisa.

Pelo que se tem percebido, a uma ameaça de ofensiva invasora dos Russos que ultrapassaria todas as marcas tem-se falado muito de sanções severas e de diplomacia, com a França neste último plano a destacar-se e não é por acaso que, no seu discurso de início da Presidência francesa no Parlamento Europeu, Macron tenha insistido preto no branco em querer recuar 30 anos, invocando processos de concertação em que a Rússia participou ativamente e daí a sua expressão (a que bem pouca gente dedicou atenção) de atuar não contra ou sem, mas com a Rússia.

Nos últimos dias tem-se ouvido muito o chavão de que para garantir a paz é necessário preparar a guerra e nesse aspeto a NATO tem sido uma permanente interrogação na relação EUA-Europa, pois espera-se sempre que os EUA vão mantendo a sua intervenção proativa nesta organização.

Felizmente, nos últimos dias têm aparecido na imprensa portuguesa alguns artigos que nos ajudam a compreender a complexidade do processo, bem para além da simples denúncia dos tiques e práticas ditatoriais de Putin. É o caso, por exemplo, de David Pimenta no jornal Público (link aqui), que chama a atenção para um aspeto que muitos diplomatas tendem a desvalorizar: “Para além dos óbvios motivos geopolíticos e geoeconómicos, o conflito entre a Rússia e a Ucrânia é também uma guerra de narrativas ligadas às identidades nacionais que, tal como outros conflitos europeus, têm a sua origem na Idade Média”. E de facto revisitando a história compreende-se o que significa o reino de Kiev para as duas narrativas: “o primordial Reino de Kiev passou a ser disputado pela Rússia e Ucrânia como sendo um exclusivo de uma ou outra narrativa: para o nacionalismo russo, o reino é parte integrante da história da Rússia; para o nacionalismo ucraniano, o reino trata-se do primeiro Estado independente ucraniano que se formou antes da existência da própria Rússia”.

É também o caso de José Pedro Teixeira Fernandes, também no Público (link aqui), que vai para além do direito internacional puro e foi dos únicos a documentar no mapa da região que a Ucrânia assumiu um dos três posicionamentos possíveis e receio bem que os líderes ucranianos o tenham feito com as promessas de apoio que os Europeus realizaram sem avaliar bem se poderiam concretizar esse compromisso, dadas as suas consequências.

E já não falo na principal contradição europeia, emergente a partir do momento em que a Alemanha negociou com a Rússia o seu fornecimento de gás natural a partir do Nord Stream 2. E a questão nevrálgica é a de saber o que pensam os alemães disto? Num modelo de represália possível perante a consumação da ameaça de invasão, a anulação do projeto colocaria a Rússia perante um problema de escoamento, mas levantaria incomensuráveis problemas ao abastecimento energético alemão.

 

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