(Optei por reproduzir aqui com a devida vénia ao El País, esta ilustração de Eva Vázquez, que muito aprecio, do artigo de Juan Luis Cebrián também referenciado neste post)
(Na edição em papel internacional do New York Times na passada sexta feira, dia 7 de janeiro de 2022 (link aqui), no artigo de opinião ao qual é dedicada a notoriedade da primeira página do jornal, o antigo Presidente americano Jimmy Carter assina um pungente testemunho intitulado “I’m fearful for America’s democracy” (Receio pela democracia americana). Trata-se de um importante testemunho que nos diz com palavras duras e sábias como fomos profundamente ingénuos acreditando que os inúmeros e variados “checks and balances” da democracia americana seriam suficientes para suster e dominar toda a série de derivas antidemocráticas. E conviria também reconhecer que o Atlântico que nos separa dos EUA não é barreira suficiente para impedir que tais ventos disruptivos não atinjam a Europa. Apanhados na ingenuidade uma vez ainda se admite, embora seja perigoso. Mas permanecer recetivo a essa armadilha duas e três vezes é demais.)
O testemunho-opinião de
Carter começa precisamente por reconhecer uma outra ingenuidade. Muita boa
gente imaginou que a chamada invasão do Capitólio em janeiro de 2020, com larga
e documentada conivência de Trump e seu séquito mais próximo e de entidades da
sociedade americana como a Fox News, chocaria a sociedade americana ao ponto de
reconsiderar a tóxica polarização que minava então a política americana. Mas ao
contrário do que essa cândida ingenuidade o admitiu, a verdade é que os
promotores da mentira sobre o roubo eleitoral associado à vitória de Biden,
largamente representados nos insurretos que estiveram quase a impedir a tomada
de posse do novo Presidente, acabaram por capturar o Partido Republicano e por
essa via distribuir desconfiança por todo o sistema político americano. Também no NYT de 7 de janeiro, Cynthia Miller-Idriss refere que entre os insurretos foi possível identificar gente que não pertence às margens do sistema: gente empregada, professores, executivos, veteranos de guerra, médicos e advogados (link aqui).
Jimmy Carter apresenta dois indicadores assustadores: 36% dos Americanos acha que o desaparecimento do modo de vida americano pode justificar o uso da força para o salvar e quase 40% dos Republicanos acha que por vezes a violência contra o governo pode ser justificada.
Sabemos, Francis Fukuyama no “Political Order and Political Decay”, publicado em 2014 pela Farrar, Straus and Giroux, explicou-o magistralmente, que a Revolução Americana que conduziu à independência americana institucionalizou a democracia e o princípio da igualdade política, diferenciando-se assim da Revolução Francesa que está na origem do Estado moderno e impessoal. Mas o mesmo Fukuyama identifica na evolução política americana mais recente dois importantes fatores que equivalem a não existir nenhuma garantia de que a democracia possa existir para sempre. Esses dois fatores perversos e ameaçadores são a rigidez institucional que está profundamente ligada ao tal sistema de “checks and balances” típico do sistema político e judicial americano e a chamada repatrimonialização, através da qual largas franjas do governo americano são capturadas pelos grupos de interesses económicos de grande dimensão. Num referencial em que estado, primado da lei e prestação de contas (accountability) definem um sistema político democrático, a democracia americana estará em perigo e o apelo de Jimmy Carter insere-se nessa corrente. Claro que não está ainda claro se esta tendência é exclusiva do sistema político americano ou se a sua extensão para as democracias liberais em geral irá inevitavelmente acontecer. O princípio da precaução e atenção aos sinais correntes justifica que seja preferível partir do princípio de que esta segunda hipótese é possível. Os sinais estão aí para documentar a necessidade da precaução. A polarização existe e tem vindo a reforçar-se. O populismo de direita pode assumir fórmulas não exatamente iguais às derivas de Trump mas revela capacidade inventiva e ganha aliados como os negacionistas desenfreados. A repatrimonialização à europeia tem também expressão. E poderíamos ir mais longe.
O sempre arguto e informado Juan Luis Cebrián alinha também no El País de hoje (link aqui) com este apelo, com palavras duras, falando de “Punhais contra a Democracia” e sublinhando que “o desafio não tem origem num inimigo exterior, mas antes no interior do sistema: a fragmentação partidária, a polarização entre blocos, a ausência de liderança, o populismo desenfreado, a perseguição a uma justiça independente, a desinformação e a mentira”. Cebrián fala ainda da “deslealdade das oposições e a entrada no sistema de partidos antissistema, dispostos a ocupar o regime e destrui-lo por dentro” como fatores endémicos de instabilidade de governação.
Por todo este contexto, e por mais longínquo e pequeno que Portugal se apresente, somos uma economia aberta e por isso mesmo, embora com o atraso conhecido, as coisas más acabam por aqui chegar, gostaria que o PS e António Costa se apresentassem às escolhas eleitorais expressando melhor o seu papel de charneira política na sociedade portuguesa. Rio e o PSD nacional cometeram nos Açores um erro gravíssimo aceitando a boleia do Chega. Como repetidas vezes tenho sublinhado, esse papel de charneira como partido de esquerda e centro-esquerda não foi incompatível com a geringonça, pois as condições objetivas da época a determinaram e se as condições objetivas do momento o determinarem podem surgir outras combinações à esquerda. Costa radicalizou o debate e focou nessa radicalização toda a estratégia eleitoral. No contexto atual das ameaças à democracia, penso que acordos ao centro não podem ser liminarmente afastados. A polarização absoluta faz parte dos males da situação atual. Tudo o que possa permitir a sua não radicalização é favorável.
Ou o PS perde as eleições e o dilúvio no PS emergirá, ou as ganha com maioria relativa e esse papel de charneira tornar-se-á vital, ou as ganha com maioria absoluta (hipótese menos provável das três mas não impossível) e aí poderá haver reformismo que não dispensará esse mesmo papel de charneira.
Mas em qualquer circunstância, estar atento ao que se passa no mundo em termos de ameaças à democracia não é coisa que deva estar ausente do modo como os eleitores decidirão as suas escolhas. Para isso, seria necessário que as forças políticas estivessem disso conscientes.
Estarão?
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