sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

GUERREIRO E A FÁBULA DO “MUNDO RURAL”

 

(A coluna Acção Paralela de António Guerreiro no IPSÍLON, link aqui, aliás ao lado de uma outra também excelente coluna, a Meditação na Pastelaria de Ana Cristina Leonardo, é do que melhor se escreve em termos de crónica ensaística na imprensa portuguesa. A densidade de escrita de António Guerreiro é forte, ninguém o pode ignorar e assim o podemos avaliar em maior extensão nos seus escritos para a revista ELECTRA da Fundação EDP, mas está irredutivelmente entre o que justifica a compra ou a assinatura de um jornal. A densidade não convida de facto à preguiça de leitura, mas cada crónica é um contributo inestimável para manter o debate em níveis para além da mercearia do momento e o conjunto do corpo central da crónica com a caixa Livro de Recitações é do mais imaginativo que conheço, como por exemplo o é a inteligente bicada no caçador e pescador Manuel Alegre a propósito da sua posição sobre a aproximação do PS ao PAN e diga-se que não morro de amores pela corte da Inês Corte Real).

Lendo inteligentemente o que se tem passado na campanha eleitoral, e para obtermos alguma cisa de interesse é de facto preciso ler nas entrelinhas e fugir à preguiça intelectual da esmagadora maioria do comentário político que acompanha as hostilidades no dia a dia eleitoral, António Guerreia pega num dos temas que poderia ter elevado a discussão política a um outro nível. A fábula do “mundo rural” é de facto um título de primeira qualidade, pois parte de um diagnóstico com o qual concordo e que consiste na evidência de que o tal “mundo rural” já não existe.

O problema interessa-me desde que já há alguns anos, a propósito da minha coordenação dos trabalhos da primeira edição do Plano Regional de Ordenamento do Território da região Centro que concluiu os seus trabalhos técnicos e que não teve entretanto sequência política, onde tive a feliz e única oportunidade de trabalhar e dialogar com a minha referência de sempre em matéria de estudos agroflorestais, o Professor Oliveira Baptista do Instituto Superior de Agronomia. A talhe de foice, recordo-me que coordenei uma extensa equipa de equipas universitárias, embora deva dizer e os jornais locais assim o evidenciam, que algumas forças vivas do PS por aquelas paragens (sobretudo o inefável Junqueiro) se tivessem abespinhado com a audácia (segundo os ditos não haveria necessidade) de trazer para coordenar aquele trabalho alguém de fora da região Centro. Felizmente, depois desse abespinhamento, tive imensas experiências de trabalho na região Centro e ao mais alto nível.

Ora, foi o Professor Oliveira Baptista que me ensinou que a grande rotura entre agricultura (incluindo pecuária e floresta) e território aconteceu quando a produção capitalista agrícola começou a poder desenvolver-se e a prosperar quebrando o determinismo de ligação a um determinado território. Os exemplos referenciados por António Guerreiro, as estufas de Odemira, os olivais e outras culturas intensivas, uma grande parte da economia do vinho que não valoriza a componente de terroir e outras são precisamente exemplos que melhor protagonizam a referida rotura. Trata-se de atividades organizadas segundo regras comuns ao capitalismo industrial e algumas delas têm ao seu serviço inovação tecnológica que prolonga o não determinismo territorial a que anteriormente me referi, e que são normalmente predadoras de recursos, ode quer que eles existam. A outra atividade que resiste e persiste com ligação ao território já não pode designar-se em rigor de agricultura, deixou de ter expressão e viabilidade mercantil e surge associada ou ajudada por um conjunto largo de outras atividades e serviços, turismo, artesanato, produtos endógenos, cuja procura é alimentada por rendimento exterior ao território em que tal persistência acontece.

António Guerreiro está certo quando associa o “mundo rural” a um conjunto de formas de vida, de trabalho e produção que estão associadas a um território e às suas características naturais. Esse universo já não existe: “o “mundo rural” é hoje mais um espaço de geografia histórica do capitalismo e das atividades predadoras”. O que é mais controverso (mas igualmente mais inspirador) é a alusão que Guerreiro faz, invocando para isso o pensamento de Gilles Deleuze, já desaparecido, sobre as diferenças entre ser de direita e de esquerda. Citando o cronista: “ser de direita, disse ele (Deleuze) é seguir a lógica do remetente de uma carta: primeiro está o próprio, depois vem a rua onde mora, a seguir a cidade e finalmente o país; ser de esquerda, pelo contrário, é começar pela perceção do horizonte mais longínquo, isto é, perceber os contornos e depois aproximarmo-nos progressivamente do que está perto de nós, de tal modo que os problemas distantes são percebidos como próximos”. E a estocada final de Guerreiro é terrível: “o ‘mundo rural’ é o que a direita vê quando se recusa a olhar para o horizonte, de onde vêm nepaleses e paquistaneses para assegurar o que resta da nossa “vida rural”.

E acho que Guerreiro continua a ter razão quanto enfatiza que a maior dependência dos fatores naturais, meteorologia e clima em geral, mas também a dimensão física do território, continua a ser a única fonte de diferenciação do em extinção “mundo rural”. É nessa onda que a chamada baixa densidade tem funcionado para muitos de nós, sobretudo na comunidade de práticas do planeamento, como uma tábua de salvação. Depois de se reconhecer que o tal “mundo rural” está em vias de extinção como tantas outras dimensões das nossas sociedades, e depois de percebermos também que o paradigma litoral-interior já teve melhores dias (que eram os dos saudosos Professores Adérito Sedas Nunes e António Simões Lopes), as ideias de mosaico de territórios e de baixa densidade começaram a amparar-nos na nossa orfandade de referências e auxiliares de leitura. Sobretudo a baixa densidade permitiu que compreendêssemos que pensamos de modo diferente consoante estamos rodeados de muita gente ou estamos muito distantes dos outros.

Tenho dúvidas de que, ao contrário do que Guerreiro sugere, todo o nosso território esteja já subordinado ao que Rem Koolhaas designa de “cidade genérica”. Mas o que sei é que o mundo rural de que fala a direita é já hoje uma abstração. Mas como o cronista nos adverte e só por isso a leitura da crónica valeria a pena, a esquerda está a perder horizonte no que Guerreiro designa de metodologia eleitoral. Ou seja, retomando o alcance do meu post anterior, também por aqui se demonstra que a esquerda embarcou no que a direita pretendia e conseguiu, evitar o horizonte e construir perceções sem a ele recorrer.

Bad feelings.

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