sábado, 29 de janeiro de 2022

SOBRE O PAPEL DO ESTADO

 

                                                            (The Economist)

(A nossa anquilosada legislação eleitoral pressupõe que dedique este sábado à reflexão, o que se torna difícil já que votei a 23 de janeiro, só se refletir sobre tal voto antecipado. Mas como sou dado a outras reflexões, trago hoje a este blogue uma questão que tem sido debatida em Portugal como se nada tivesse acontecido nas economias de mercado, pelo menos desde a Grande Recessão de 2007-2008. E não menos importante do que essa profunda limitação por cá também muito se discute o papel do Estado numa ótica quase exclusivamente económica, deixando na sombra ou na penumbra a questão do modelo social em que queremos viver. O que, minhas Senhoras e meus Senhores, ainda é o que nos vai distinguindo, a nós Europeus, de outros modelos de sociedade no mundo.)

E se o nível de leitura e de interesse pela investigação que se vai fazendo por esse mundo fora não fosse, entre muros, tão baixo, perceberíamos facilmente que o tema tem novas leituras e perspetivas e que até revistas insuspeitas na sua defesa do modelo liberal, como o The Economist, lhe têm dedicado novos olhares e atenção crítica. A revista britânica dedica-lhe na semana de 15 a 21 de janeiro de 2022 um “special report, sob o tema global Business and the State (link aqui). E, de uma vez por todas, é preciso convencer jornalistas e políticos que quando se discute se a intervenção pública é excessiva ou nefasta é do papel do Estado, da sua qualidade, eficácia, eficiência e impacto que se deve falar e não apenas do peso do Estado. Porque, entre outros argumentos, só assim é que poderemos avaliar se pagamos muitos ou poucos impostos. Mas esta ideia custa a entrar …

 

                                                                (The Economist)

O que é curioso neste aparente ressurgimento do intervencionismo público e obviamente do movimento de rejeição dessa tendência ou possibilidade é que nunca como hoje ele coexistiu com tantas reservas ou críticas formadas a partir de dentro do próprio capitalismo. A desigualdade crescente que as economias de mercado mais avançadas têm evidenciado na última década e meia, apesar das políticas públicas mais ou menos redistributivas (e sabemos como essa desigualdade é bem mais notória antes de serem considerados os efeitos redistributivos), gera um ambiente que só aproveita ao topo do topo dessa distribuição. O crescimento económico regular quando é visto na ótica do capitalismo mediano prospera sobretudo em períodos de acalmia e estabilidade da barganha política e social. Claro que não adianta projetar a nossa comparação apenas nos anos dourados do crescimento económico europeu dos anos 50 e primeira metade dos anos 60. Esse período é praticamente irrepetível e as normas de consumo, de estabilização e de distribuição do rendimento terão de ser reinventadas com outras soluções e a transformação digital e a emergência climática que nos esperam serão gigantescos desafios nessa matéria. O special report do Economist reproduz imensas afirmações de grandes CEO e capitalistas reputados mostrando que, nunca como hoje, se falou tanto de reinvenção, reforma e salvação do próprio capitalismo. E como a revista honestamente o assinala, a última década até à emergência pandémica trouxe-nos um gigantesco processo de privatizações. Sabemos como o ajustamento macroeconómico da crise das dívidas soberanas em Portugal serviu de pretexto e agilização a uma mão cheia de privatizações em cima do joelho, com o absurdo (eu diria lata e completa falta de pudor) de terem sido realizadas antes de existir um quadro estratégico global para essas privatizações, o qual seria publicado muito depois em legislação que perdera conteúdo, pois havia pouco que privatizar. O comentário político tão apressado e deliciado em investir sobre o excesso de intervenção pública passa por cima desta realidade como se queimasse e percebe-se que queima, pois o único critério para esse amplo processo foi o da receita fiscal, ainda por cima observado em período de saldos.

O Economist compreende obviamente esta contradição e invoca por isso subtilmente a diferença entre propriedade e influência. Quanto à primeira, os dados não enganam e a propriedade pública representará algo em torno dos 10% da capitalização total do mercado, quando ela já foi mais alta. A inspiração liberal da revista fá-la centrar o foco no que considera influência pública excessiva e elege para isso quatro domínios onde pressupostamente o “perigo intervencionista” estará localizado: a política industrial, a política anti-trust para combater a excessiva concentração empresarial, a regulação e a tributação.

Por agora, vale a pena desfazer o profundo equívoco que existe sobre a política industrial. A ideia de que o ressurgimento do conceito é uma espécie de bicho papão que vem comer os recursos do crescimento económico constitui uma profunda mistificação, como alguns economistas, como por exemplo Dani Rodrik em One Economics, Many Recipes, Princeton University Press, 2007, já demonstraram com elevado rigor histórico e científico. Associar a política industrial a um excesso de influência do Estado e a um descrédito da economia de mercado é um verdadeiro embuste. Poderíamos retorquir que os anos 80 e 90, através da generalização do chamado Consenso de Washington com o qual o neoliberalismo económico pretendeu moldar e vergar o mundo às suas teses, equivaleram a impor uma desastrada e imprevidente retirada da política industrial. Isso penalizou fortemente os países em trajetória de mudança estrutural na economia mundial e a evidência histórica mostra que os bons alunos do Consenso de Washington (essencialmente a América Latina e a África) cresceram claramente menos dos que não o aplicaram ou o fizeram de modo mais heterodoxo (essencialmente países asiáticos).

Por muito que possa custar ao ideário do Economist, a arte da política industrial está precisamente em conseguir que a influência do Estado não se confunda com substituição da lógica de mercado. As experiências de países como a Coreia do Sul, Taiwan, Vietname e outros (já não falando na China que não é comparável) demonstram essa realidade com clareza, conseguindo impor uma trajetória de desenvolvimento tecnológico e de exportação que os guindou a quotas crescentes no comércio internacional, com profunda mudança estrutural da sua especialização.

E se quisermos ser honestos, a própria União Europeia, ou melhor o diretório pró-mercado que por lá se movimenta, fez desaparecer precocemente o conceito de política industrial, emendando depois a mão dizendo que a política industrial europeia é a política de investigação e inovação tecnológica (o que não é correto). Claro que quando se pretendeu reinstalar no debate a questão da “reindustrialização europeia” se compreendeu quão idiota tinha sido o precoce enterro da política industrial, anunciando entre outras coisas como a própria Comissão Europeia está fatiada nas suas instituições.

Uma boa matéria para debate, e não precisamos necessariamente de invocar a Mariana Mazucatto e a sua Mission Economy para o compreender, consistirá, por exemplo, em perceber o que foi o esforço de construção em tempo recorde das vacinas COVID-19. O que esse esforço mostrou é que nem o setor público, nem o setor privado seriam capazes, por si só, de concretizar tal empreendimento. Podemos discutir, e teremos de o fazer com rigor, se o preço a pagar pelo público não terá sido demasiado alto face aos ganhos auferidos pelo setor privado. Mas o exemplo mostra que quando se invoca a política industrial isso não significa asfixia do mercado, mas antes a reconsideração do papel que ele pode assumir. Não é o Estado que sabe apreender oportunidades de investimento. Mas desligar-se de traçar linhas de desenvolvimento e determinação de opções nacionais equivalerá sempre a Estados fracos.

(Retomo aqui o post dedicado à obra recente de Dani Rodrik e Stephane Stancheva, link aqui).

E com esta me quedo em termos de sábado reflexivo. Há futebol para ver e na Netflix e na HBO há material muito interessante para desfrutar. Na HBO e sobretudo para quem tenha curiosidade em mergulhar na Nova Iorque dos fins do século XIX e compreender o confronto entre a velha Nova Iorque (a aristocracia) e a Nova Iorque ditada pelo crescimento do capitalismo tem na série THE GIELDED AGE um excelente entretenimento. Pelo primeiro episódio que já visualizei vale bem a pena.

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