(Durante largo tempo o termo política industrial foi proscrito no mainstream económico. Eram tempos de uma falsa perceção sobre a inutilidade e desvantagens da intervenção pública na alocação dos recursos de investimento. Baseada na atraente ideia de que só as empresas e não o Estado sabem qual a alocação de recursos mais conveniente, essa proibição apagou a importante lição que algumas economias emergentes com destaque para a Coreia do Sul nos ofereceu. A União Europeia durante também um largo período ocultou o problema sob o âmbito das políticas de inovação. Mas gato escondido rabo de fora e hoje é cada vez mais percetível que, por mais importante que a política de inovação e desenvolvimento tecnológico se apresente, não podemos mais ocultar a ideia de política industrial, independentemente da modalidade que ela possa revestir. Cá pelo burgo, todas estas matérias se abatem sobre a nossa realidade, mas sobre tal projeção emerge uma outra: o arremedo de política industrial em Portugal submergiu na realidade e tradição dos sistemas de incentivos ao investimento apoiados por Fundos Estruturais, particularmente o FEDER…)
O fardo da história e da nossa pequena dimensão determinam que para mal dos nossos pecados os grandes debates económicos cheguem tarde ao país ou se percam pelo caminho por não interessarem aos centros de inteligência, que navegam naquela deliciosa inércia de controlo do acesso ao poder. As entrelinhas dos rumos da programação comunitária, que agitam os corredores mais próximos e melhor informados, chegam-nos tarde e o irritante estatuto do bom aluno na utilização dos Fundos Europeus que estamos sempre a invocar para apagar qualquer má consciência que precisava de uma boa psicanálise coletiva torna-nos subservientes e acríticos, o acesso aos Fundos está primeiro do que tudo. Há vários exemplos que explicam esta minha posição. Vejam, por exemplo, o reduzido impacto que teve na nossa inteligência mais especializada a ideia da Mission Economy defendida nas cercanias do poder em Bruxelas pela estrela emergente Mariana Mazucatto. Existem dossiers prontos e ajustados à exploração dessa nova abordagem, como por exemplo o da transformação digital, da transição energética, das tecnologias de observação da Terra a partir do espaço, mas aparentemente não se avistam lideranças para pegar nessa conceção inspiradora e levá-la à prática.
Em meu entender, anda no ar um debate convergente em torno dos rumos da política industrial. Por isso, em vez de ceder aos encantos da sereia da inércia para um período de programação de sistemas de incentivos ao investimento, valeria apena inverter um pouco as coisas, ou seja, os sistemas de incentivos devem respeitar um determinado enquadramento estratégico e não substituir-se pelo emaranhado das suas tipologias de intervenções a essa orientação.
E existem referências de pensamento incontornáveis para pensar profundamente nesta questão do ponto de vista do modelo de intervenção.
Regressemos aos “basics” regra geral esquecidos, diria melhor, ocultados pela vulgata liberal:
“Os mercados não se criam, não se regulam, não se estabilizam nem se legitimam por si próprios. Por isso, qualquer economia de mercado que funcione bem assenta em instituições não mercantis para desempenhar esses papéis.”
As palavras são de Dani Rodrik e de Stefanie Stancheva num artigo recentíssimo para a Oxford Review of Economic Policy (link aqui) e refletem uma tendência de investigação com a qual me identifico. E não estamos a falar de um economista qualquer. Dani Rodrik tem uma vastíssima obra sobre a reconsideração da política industrial em ambiente de globalização e Stephanie Stancheva é neste momento uma co-investigadora desse tema de grande qualidade. O ponto de partida da abordagem é particularmente acutilante. A política industrial quando considerada do ponto de vista das economias abertas enfrenta dois desafios, o da transição energética e climática (que não é o mote do artigo, mas do qual temos abundantemente falado neste espaço) e o do crescimento inclusivo.
Pode parecer uma deriva ideológica associar a política industrial à inclusão social. Mas não o é. A política industrial não pode ignorar as condições dos mercados de trabalho em que vai operar a alocação de recursos de investimento que vai promover. E a razão é bem simples e também aqui repetidas vezes abordada, chama-se polarização do mercado de trabalho. A ação conjugada da globalização e da inovação tecnológica tem produzido o conhecido “skill bias” (favorecendo as melhores qualificações no mercado de trabalho e as elevadas remunerações que lhe andam associadas e tem contribuído para destruir empregos que geralmente tendemos associar às classes médias. Se não contrariar estas tendências, a política industrial tenderá, pelo contrário, a exacerbá-las. O que Rodrik e Stancheva consideram é que neste contexto as políticas inclusivas mais tradicionais, tais como as políticas de educação, formação, tributação progressiva e proteção social não bastam para combater a questão da polarização. Podem quando muito atenuar as franjas da desqualificação, mas não obstar aos efeitos de desigualdade que a polarização determina. É por isso que numa abordagem bastante inovadora associam o papel potencial da política industrial à geração de melhores empregos, ou seja empregos que valorizem qualificações designadamente intermédias e que assegurem remunerações e desenvolvimentos profissionais e de carreiras que contrariem os efeitos penalizadores da anteriormente referida polarização.
A abordagem que propõem para a política industrial é bastante mais integrada e ambiciosa do que a recorrente ligação entre política industrial e política de inovação, que enquadra dominantemente por exemplo os sistemas de incentivos com cofinanciamento dos Fundos Europeus. Trata-se de uma política com fortíssima densidade institucional (por isso só ao alcance de boa e inovadora governação, que costuma ser a pedra de toque das políticas de inovação, ou seja, a governação não está ao nível da inovação que pretende promover) e que está baliza por quatro tipos de instrumentos:
- Políticas ativas de emprego com forte ligação aos empregadores;
- Políticas industriais e regionais focadas na criação de “melhores empregos”;
- Políticas de inovação que incentivem a utilizem de tecnologias amigáveis para o mundo do trabalho;
- Políticas económicas internacionais que favoreçam a manutenção a nível nacional de padrões de qualidade de trabalho elevada.
Desta abordagem, o grupo de políticas institucionalmente mais exigentes são claramente as políticas ativas de emprego em estreita associação com os empregadores: “Enfatizamos a importância de um novo quadro institucional que permita o desenvolvimento uma troca de informação e uma cooperação de longo prazo entre governos e empresas (assim como entre o público em geral e os decisores de política) sublinhando o compromisso conjunto dos setores público, privado e da sociedade civil para proporcionar estas melhorias generalizadas”. É assim toda uma diferente maneira de conceber e implementar a política industrial, abdicando de uma perspetiva “top-down” e prescritiva para se transformar numa abordagem colaborativa e interativa.
Há várias maneiras de conceber e organizar estas políticas colaborativas e sustento, creio que com argumentos válidos de avaliação de terreno, que é possível em Portugal ensaiar políticas desta natureza, seja numa perspetiva em que o setor de atividade está consolidado e apresenta uma forte clusterização territorial, seja numa perspetiva mais territorial, resolvido que seja o problema do território pertinente para concretizar e operacionalizar tal abordagem.
A nível ainda muito embrionário, em algumas unidades territoriais NUTS III, no âmbito da racionalização da oferta de cursos profissionais (qualificações intermédias), têm sido ensaiadas primeiras aproximações a essa abordagem colaborativa e interativa, sendo possível trabalhar esses contextos embrionários para uma prospetiva de empregos e competências que corresponda à perspetiva de Rodrik e Stancheva. Enquanto explicitação de possíveis conflitos de interesses, tenho a dizer que tenho acompanhado esses ensaios no âmbito do trabalho valioso que a Quaternaire Portugal tem desenvolvido em matéria de racionalização de oferta de qualificações intermédias em diferentes territórios. Tais processos precisam de ser alargados para incluir a prospetiva de empregos e competências integrando qualificações superiores e avançadas, de maneira a colocar de forma mais frontal a questão da polarização.
O que se destaca do trabalho de Rodrik e Stancheva, que está sucintamente ilustrado pela imagem que abre este post, é a possibilidade de, numa abordagem única e integrada. cruzar os diferentes tipos de desigualdade que se pretende focar e o estádio (pré-produção, produção e distribuição) em que a intervenção da política pública deve ser promovida. Na matriz em questão, compreende-se perfeitamente o papel que cabe à política industrial na promoção de melhores condições às classes médias através de uma política de geração de “melhores empregos”.
Obviamente que o recurso escasso desta abordagem é de natureza institucional e envolve um novo ciclo de colaboração público-privado. Não quero puxar a brasa à minha sardinha socialista, mas considerando que PCP e Bloco de Esquerda pelo quase ódio que nutrem pela palavra empresa (que o PCP disfarça com a treta dos pequenos empresários), o PS teria aqui um campo riquíssimo de manobra para forjar um novo ciclo de políticas de inovação com uma componente de políticas ativas de emprego. Não tenho a certeza se as mentes mais esclarecidas do PSD compreenderão o alcance desta abordagem, talvez a considerem uma reinvenção do intervencionismo. Sugerir não ofende e estou seguro que não se trata de academismo. É antes uma nova filosofia de política industrial que está aqui a formar-se, aliás com poder inventivo para a própria social-democracia e sobretudo para uma participação mais inteligente dos sindicatos na vida pública.
Para monitorização futura.
E já agora estou-me completamente nas tintas se o Almirante entenderá esta questão.
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